Capa da publicação Coisa julgada não é mais uma certeza
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O passado tornou-se incerto e o futuro imprevisível

18/04/2024 às 17:26
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A coisa julgada passou a ser reversível por decisão da Corte Suprema e com efeito retroativo, agravando a situação da pessoa dispensada, por exemplo, do pagamento de determinado tributo.

Ter a seu favor uma coisa julgada, uma garantia fundamental protegida por cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inciso IV da CF), não mais significa certeza do seu direito.

Ela pode ser revertida, a qualquer tempo, por decisão da Corte Suprema e com efeito retroativo, agravando a situação da pessoa dispensada, por exemplo, do pagamento de determinado tributo.

Tanto o STF, como STJ contribuem para a incerteza do passado e imprevisibilidade do futuro, porque as decisões nem sempre são pautadas de conformidade com a ordem legal e constitucional vigente.

Examinaremos essa questão no âmbito de cada Tribunal.

a) No Supremo Tribunal Federal

Nos idos de 1990, o STF declarou a inconstitucionalidade da cobrança da CSLL prevista na Lei nº 7.698/88.

Só que em 2007 o mesmo STF no julgamento da ADI nº 15 reputou constitucional aquela CSLL declarando a inconstitucionalidade apenas dos arts 8º e 9º da Lei nº 7.698/88, resguardando a cobrança da CSLL.

O V. Acórdão nada adiantou a cerca dos detentores da coisa julgada em sentido contrário.

É certo, porém, que a declaração de constitucionalidade surte efeito ex tunc ensejando a cobrança retroativa do tributo, ressalvado, contudo, os detentores da coisa julgada em sentido contrário. Pelo menos é assim que todos entendiam. Só uma rescisória poderia invalidar o efeito da coisa julgada!

Porém, o STF nos julgamentos dos RREE nº 949297 e nº 955227, sob a égide de repercussão geral, para o grande espanto de todos, decidiu que a decisão contrária proferida no RE sob a égide de repercussão geral e nas ações de controle concentrado reverte automaticamente a coisa julgada em sentido contrário, descabendo a cogitação de efeito modulatório.

O Ministro Roberto Barroso acrescentou que quando a Corte julgou constitucional a CSLL nos idos de 2007 o detentor da coisa julgada que exonerava o encargo da CSLL deveria ter feito o seu pagamento incontinente. Não tendo feito esse pagamento, sustentou o ilustre Ministro, aumentando o nosso espanto, que o contribuinte até então exonerado da obrigação tributária teria feito uma aposta, como no cassino, e perdeu a aposta pelo que deve arcar com as consequências da opção que ele fez. Só que até hoje ninguém ousou comparar o Excelso Pretório Nacional a um cassino.

Ora, a coisa julgada é uma garantia constitucional. Se for para desrespeitá-la o STF deveria ter dito em 2007 que aquela coisa julgada obtida em 1990 ficava revertida, e não afirmar isso depois de passados mais de 16 anos da decisão de constitucionalidade da CSLL.

Outra decisão, mais recente, que impacta a decisão plenária da Corte Suprema diz respeito à proclamação do direito à “revisão da vida toda”

Como se sabe, depois de 25 anos de discussão o STF decidiu favoravelmente ao aposentado, assegurando os benefícios previdenciários sem o fator previdenciário que achata o valor do benefício (RE Nº 1.176.977). Isso aconteceu no final de 2022.

Contudo, o governo alertou que essa decisão irá causar um rombo de R$ 480 bilhões aos cofres da Previdência. Segundo os cálculos do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, o impacto financeiro seria de apenas R$ 1,5 bilhão.

Logo, o STF retirou de pauta o julgamento de Embargos Declaratórios interpostos pelo INSS no RE nº 1.176.977 que ocorreria no dia 21-3-2024, e em seu lugar pautou duas ADIs a de nº 2.110 e a de nº 2.111 que questionam o fator previdenciário e que estavam engavetados.

Por maioria de votos, o STF decidiu que o art. 3º da Lei nº 9.876/99, que insistiu o fator previdenciário, é de aplicação cogente, e não conforme o entendimento manifestado no julgamento do RE 1.176.977.

O Ministro Zanin, que teve a ideia de colocar em pauta as duas ADIs, invocou o § 1º, do art. 201 da CF para vetar a adoção de critérios diversos na concessão do benefício previdenciário.

O Ministro Alexandre de Moraes divergiu da maioria entendendo que o art. 3º da Lei nº 9.876/99 possibilita a escolha do critério mais benéfico para o segurado. Seu voto foi seguido pelos Ministros André Mendonça, Edson Fachin e Cármen Lúcia.

Mas, por 7 votos contra 4 o STF, por vias oblíquas, reverteu a tese da revisão da vida toda. Pergunta-se, por que cargas d’águas não procedeu julgamento conjunto do RE e das ADIs desde o começo? Para usar as ADIs como instrumento de sabotagem do que for decidido no Recurso Extraordinário, conforme a direção dos ventos que sopram no cenário econômico?

Com isso, pensamos que o julgamento dos Embargos Declaratórios restaram prejudicados.

Como é possível que a mesma norma, o art. 3º da Lei nº 9.876/99, deva sofrer interpretação divergente conforme seja ele apreciado no Recurso Extraordinário e no bojo de uma ação de controle concentrado?

Enfim, decisões da espécie geram muita insegurança jurídica e frustram a justa expectativa dos jurisdicionados.

b) No Superior Tribunal de Justiça

O STJ vinha julgando indevido o ICMS incidente sobre a TUST e a TUSD pelas duas Turmas de Direito Público, porque em tais hipóteses não há ocorrência do fato gerador, à luz do que dispõe a sua Súmula de nº 166, conforme ementas abaixo:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. OMISSÃO INEXISTENTE. LEGITIMIDADE ATIVA. ICMS SOBRE “TUSD” E “TUST”. NÃO INCIDÊNCIA. SÚMULA 83/STJ.

1. Não há a alegada violação do art. 535 do CPC, ante a efetiva abordagem das questões suscitadas no processo, quais sejam, ilegitimidade passiva e ativa ad causam, bem como a matéria de mérito atinente à incidência de ICMS.

2. Entendimento contrário ao interesse da parte e omissão no julgado são conceitos que não se confundem.

3. O STJ reconhece ao consumidor, contribuinte de fato, legitimidade para propor ação fundada na inexigibilidade de tributo que entenda indevido.

4. “(…) o STJ possui entendimento no sentido de que a Taxa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia Elétrica – TUST e a Taxa de Uso do Sistema de Distribuição de Energia Elétrica – TUSD não fazem parte da base de cálculo do ICMS” (AgRg nos EDcl no REsp 1.267.162/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN,SEGUNDA TURMA, julgado em 16/08/2012, DJe 24/08/2012).

Agravo regimental improvido.” (AgRg no AREsp 845.353/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 05/04/2016, DJe 13/04/2016).

PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DO ART. 535DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. ICMS SOBRE “TUST” E “TUSD”.NÃO INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE CIRCULAÇÃO JURÍDICA DAMERCADORIA. PRECEDENTES.

1. Recurso especial em que se discute a incidência de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços sobre a Taxa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD).

2. Inexiste a alegada violação do art. 535 do CPC, pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, conforme se depreende da análise do acórdão recorrido.

3. Esta Corte firmou orientação, sob o rito dos recursos repetitivos (REsp 1.299.303-SC, DJe 14/8/2012), de que o consumidor final de energia elétrica tem legitimidade ativa para propor ação declaratória cumulada com repetição de indébito que tenha por escopo afastar a incidência de ICMS sobre a demanda contratada e não utilizada de energia elétrica.

4. É pacífico o entendimento de que “a Súmula 166/STJ reconhece que ‘não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte’.

Assim, por evidente, não fazem parte da base de cálculo do ICMS a TUST (Taxa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia Elétrica) e a TUSD (Taxa de Uso do Sistema de Distribuição de Energia Elétrica)”.

Nesse sentido: AgRg no REsp 1.359.399/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 19/06/2013; AgRg no REsp 1.075.223/MG, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em04/06/2013, DJe 11/06/2013; AgRg no REsp 1278024/MG, Rel.Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/02/2013, DJe 14/02/2013.

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Agravo regimental improvido.”(AgRg no REsp 1.408.485/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 12/05/2015, DJe 19/05/2015).

TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.LEGITIMIDADE ATIVA DO CONTRIBUINTE DE FATO. UTILIZAÇÃO DE LINHA DE TRANSMISSÃO E DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. ICMS SOBRE TARIFA DE USO DOS SISTEMA DEDISTRIBUIÇÃO (TUSD).IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE OPERAÇÃO MERCANTIL.

1. O ICMS sobre energia elétrica tem como fato gerador a circulação da mercadoria, e não do serviço de transporte de transmissão e distribuição de energia elétrica, incidindo, in casu, a Súmula 166/STJ. Dentre os precedentes mais recentes: AgRg nos EDcl no REsp 1267162/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 24/08/2012.

2. A Primeira Seção/STJ, ao apreciar o REsp 1.299.303/SC, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJe de 14.8.2012, na sistemática prevista no art. 543-C do CPC, pacificou entendimento no sentido de que o usuário do serviço de energia elétrica (consumidor em operação interna), na condição de contribuinte de fato, é parte legítima para discutir a incidência do ICMS sobre a demanda contratada de energia elétrica ou para pleitear a repetição do tributo mencionado, não sendo aplicável à hipótese a orientação firmada no julgamento do REsp 903.394/AL (1ª Seção, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 26.4.2010 – recurso submetido à sistemática prevista no art. 543-C do CPC).

3. No ponto, não há falar em ofensa à cláusula de reserva de plenário (art. 97 da Constituição Federal), tampouco em infringência da Súmula Vinculante nº 10, considerando que o STJ, ao apreciar o REsp 1.299.303/SC, interpretou a legislação ordinária (art. 4º da Lei Complementar nº 87/96).

4. Agravo regimental não provido.” (AgRg no REsp 1.278.024/MG, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 07/02/2013, DJe 14/02/2013).

Em recente julgamento a Primeira Seção do STJ reverteu aquela jurisprudência escorreita, mediante invocação de uma série de argumentos relativos a processos de produção e comercialização de energia, que começa com a geração seguida de transmissão e distribuição até chegar ao consumidor final, invocando a Lei nº 9.074/95 que veio segmentar o setor de energia elétrica.

A segmentação desse setor nada tem a ver com o fato gerador do ICMS que implica necessariamente uma circulação jurídica da mercadoria (compra e venda) segundo pacífica jurisprudência do STF que levou exatos 23 anos para afastar a tese da mera circulação física, desprovida de troca de propriedade ou de posse.

Tanto assim é que o § 5º do art. 4º da Lei nº 9.074/95 veda ao concessionário de distribuição de energia elétrica de desenvolver:

a) atividade de geração de energia; e

b) atividade de transmissão de energia

Demonstra que são empresas concessionárias diferentes para cada tipo de concessão: geração, transmissão e distribuição.

A transmissora não promove venda de energia, nem a geradora, salvo quando vende diretamente a grandes consumidores de energia, como permitido pela Lei nº 9.074/95.

Se o ato de geração, de transmissão e distribuição, por si só, não constitui fato gerador do ICMS a conclusão que se impõe é que os valores correspondentes a essas operações não podem compor a base de cálculo do ICMS.

Por muito menos o STF determinou a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS, porque não sendo o ICMS uma mercadoria não poderia compor a base de cálculo das aludidas contribuições sociais que têm como fato gerador exatamente o faturamento, e o ICMS não é faturamento (RE nº 574.706 DJe de 17-3-2017).

Lamentavelmente, por maioria de votos, a Primeira Seção do STJ alterou a sua jurisprudência solidificada pelas duas Turmas de Direito Público para determinar a tributação da TUSD – Taxa de Uso de Distribuição de Energia Elétrica, sem que tivesse havido qualquer modificação legislativa.

Dessa forma, ambos os tribunais superiores – o STF e o STJ – não mais inspiram a confiança dos jurisdicionados porque mudam de posição segundo as circunstâncias do momento, como decorrência de sua excessiva politização.

Não é missão do Judiciário preocupar-se com a saúde financeira do Estado, nem de fazer justiça segundo o seu conceito, mas de conformidade com o conceito de justiça formulado pelo legislador, ainda que o dos juízes seja o melhor, para que todos possam viver em paz e em harmoniza com a plena previsibilidade que decorre das leis perenes.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. O passado tornou-se incerto e o futuro imprevisível. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7596, 18 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109048. Acesso em: 29 abr. 2024.

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