Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/55307
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O custo político-social da greve do servidor público e o julgamento do recurso extraordinário 693.456/RJ

O custo político-social da greve do servidor público e o julgamento do recurso extraordinário 693.456/RJ

Publicado em . Elaborado em .

O direito de greve do servidor público é um direito social fundamental constitucionalmente previsto, ainda carente de regulamentação específica. Por isso, o julgamento RE 693.456/RJ pelo STF se fez fundamental para regular aspectos não contemplados em lei.

1 INTRODUÇÃO

O direito de greve é uma conquista bastante recente da jovem e tímida democracia brasileira. Apenas em 1988 o exercício da greve adquiriu os contornos que apresenta hoje, tendo sido anteriormente uma conduta tipificada como crime.

Assim, a previsão constitucional do direito de greve (art. 9 e 37, VII, CRFB/88) atribuiu-lhe status de direito social fundamental, mas não esgotou sua regulamentação no ordenamento jurídico pátrio.  Isso porque a própria Constituição exigiu que, no caso dos servidores públicos, fosse editada lei específica para regulação da matéria, o que até hoje não foi cumprido.

A mora do Congresso Nacional e o consequente vácuo legal que dela adveio ensejaram inúmeras discussões sobre a possibilidade de exercício do direito de greve pelo servidor público. O entendimento sobre o tema em muito se alterou ao longo do tempo, inclusive na Suprema Corte, o que fez com que o tratamento dado a esse direito fosse constantemente alterado, variando de acordo com as circunstâncias políticas e ideológicas próprias de cada período histórico.

Devido à falta de uma regulamentação legal definitiva, muitas polêmicas surgem em torno da questão do direito de greve do servidor público. A mais recente delas ocorreu em outubro de 2016 e inspirou esta pesquisa, quando a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário 693.456/RJ, entendeu constitucional o desconto dos dias não trabalhados do servidor em greve, quando esta não tiver sido provocada por ato ilícito da Administração. A aprovação dessa tese de repercussão geral dividiu opiniões, e trouxe novamente à tona o descaso do legislador em regulamentar tão relevante matéria.

Destarte, este trabalho pretende analisar o direito de greve em si, o tratamento dispensado a ele no que tange ao servidor público e as implicações da recente decisão do STF, sem adentrar nos muitos méritos que se escondem nas entrelinhas dessa questão.

Para tanto, urge confrontar diferentes ideais: a busca pelo exercício pleno do direito de greve com a necessidade de eficiência do serviço público; a defesa de condições salutares de trabalho com a consecução dos interesses coletivos; a manutenção da greve como instrumento de desenvolvimento social e de luta do trabalhador com a conveniência da imposição de limites a esse mesmo direito, para que ele não esbarre em outras liberdades e garantias dos cidadãos.


2 O DIREITO DE GREVE

O direito de greve - previsto na Constituição da República Brasileira de 1988 em seus artigos 9 e 37, VII – é indiscutivelmente uma das maiores conquistas do Estado democrático de Direito e da população sob seu jugo.  Isto porque a greve, enquanto “modo direto de solvência de conflito coletivo de trabalho, mediante autotutela” (OLIVEIRA, 2010, p. 407), representa um dos mais importantes instrumentos de consecução de melhorias nas condições de trabalho, bem como constitui mecanismo de resistência do obreiro em tempos de precarização do emprego.

Longe de ser um mero clamor da classe operária por melhores condições de trabalho e vida, o movimento grevista faz com que a atenção de todos seja voltada ao cenário político, econômico e social como um todo. É, portanto, fundamental que se observe o tripé trabalhador-empresário-sociedade quando tal insurreição ocorre, deixando de lado a noção de que a greve se limita a um problema onde figuram apenas dois lados (LIMA, 2012).

É exatamente por refletir o que ocorre no interior do seio social e por denunciar as misérias intrínsecas à adoção de um determinado modelo econômico que as greves existiriam com ou sem regulamentação estatal, sendo a livre expressão dos grupos e a existência de uma consciência coletiva organizada os principais propulsores desse tipo de movimento.

Deste modo, para que fosse possível evitar a aniquilação da liberdade reivindicatória do trabalhador ou, no outro extremo, a anarquização dessa forma de protesto, fez-se mister que a greve migrasse da noção de mero fato social para ser tratada, também, como evento jurídico (LIMA, 2012). Nesse sentido, a lição de Francisco Gérson Marque de Lima acerca do reconhecimento legal da greve:

De um lado, reconhece-se a greve como direito; e, de outro, impõem-se-lhe limites. E o Poder Público, após discipliná-la e acomodá-la a certa ordem, passa a interpretá-la segundo a conveniência do momento e a ideologia que domina o Estado: a do capital (LIMA, 2012, p.61).

Na mesma esteira, a doutrina de Alice Monteiro de Barros:

A regulamentação é um imperativo, cujo objeto é garantir a efetividade do conteúdo essencial desses direitos (...). Impõe-se, portanto, sejam compatibilizados tais direitos e liberdades.

 (BARROS, 2006, p.1264).

Dos excertos acima, depreende-se facilmente que a regulamentação do exercício do direito de greve se mostrou imprescindível para que o trabalhador mantivesse sua liberdade de reivindicação e, ao mesmo tempo, que tal liberdade não implicasse em prejuízos à sociedade. Assim, acertou o constituinte brasileiro ao inserir no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), em seu Capítulo sobre os Direitos Sociais, o artigo que assegurou direito fundamental tão caro ao cidadão, o qual aqui se reproduz ipsis literis:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender (BRASIL, 1988).      

Destarte, a positivação desse direito fundamental confirmou o “status de essencialidade” (DELGADO, 2008, p.193) do direito de greve nas ordens jurídicas contemporâneas, ao passo em que atribuiu à greve os elementos força e civilidade.

2.1 Um Breve Histórico

Há diversos entendimentos acerca das primeiras manifestações grevistas. Alguns autores apontam que tais eventos ocorreram ainda no êxodo dos hebreus ao deixar o Egito, ou no Baixo Império Romano, enquanto outros apontam o marco inicial da história da greve como o início do movimento sindical inglês, devido ao surgimento do trabalho assalariado por ocasião da Revolução Industrial (SOUZA, 2010).

No Brasil, por sua vez, o movimento grevista está intimamente relacionado ao movimento sindical. Esse marco se deu com o fim da escravidão, em 1888, quando a relação de emprego figurou como modalidade central de vinculação ao sistema socioeconômico (SOUZA, 2010).

O primeiro diploma legal a abordar o tema da greve foi o antigo Código Penal (Decreto 847/1890), que a tipificou como ilícito criminal. As constituições que se seguiram, quais sejam a de 1891 e a de 1934, foram omissas quanto ao tema, e a situação não melhorou com os diplomas legais seguintes. Por muito tempo, manteve-se a orientação normativa de proibição, e até mesmo criminalização do movimento grevista, tendo este demorado a abandonar o aspecto de movimento antissocial, ilícito e criminoso que lhe fora atribuído. (SOUZA, 2010).

Foi somente com o processo de redemocratização, vivido a partir de 1945, que a greve passou a ser vislumbrada pela legislação infraconstitucional como direito do trabalhador, e finalmente confirmada como tal pela Constituição Republicana de 1946.

O período do regime militar que se seguiu, no entanto, voltou a fazer com que novamente se restringisse o direito à greve, e o agravamento do caráter autoritário do regime político culminou com a edição do AI-5, em 1968, e a inviabilização de qualquer paralisação trabalhista (SOUZA, 2010).

Foi somente com a Constituição Cidadã, de 1988, que se devolveu à greve o status de direito, tornando-a “instrumento democrático a serviço da cidadania e da dignidade humana” (LIMA, BELCHIOR, 2008, p.6), verdadeiro direito fundamental.

O artigo 9º, supratranscrito, bem como o art. 37, VII do mesmo diploma, transformaram a greve em garantia constitucional do trabalhador – tanto da esfera pública quanto da privada - tornando-a passível de ser exercida com a necessária liberdade e, ao mesmo tempo, de ser limitada pelo Estado, de modo que se garantisse a máxima observância a todos os direitos fundamentais ali envolvidos, tais como o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade.

Apesar de o direito de greve dos trabalhadores do setor privado já ser regulado por lei específica (Lei 7.783/89), o mesmo direito ainda necessita de norma regulamentadora na seara pública, requisito exigido pela própria Constituição em seu artigo 37, VII:

Art. 37, VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica. (BRASIL, 1988)

A não elaboração da lei complementar regulamentando o direito de greve dos servidores públicos civis ensejou a propositura do Mandado de Injunção nº. 20-DF (Rel. Celso de Mello, DJ de 22-11-1996). Neste julgamento histórico, firmou-se entendimento no sentido de que o direito de greve dos servidores públicos não poderia ser exercido antes da edição da lei complementar respectiva, sob o argumento de que o preceito constitucional que reconheceu o direito de greve constituía norma de eficácia limitada, desprovida de autoaplicabilidade (MENDES, 2012).

Em 2006, foi proposta a revisão parcial do entendimento até então adotado pelo Tribunal, oportunidade em que alguns ministros apresentaram votos que recomendaram a adoção de uma solução normativa e concretizadora para a omissão verificada.

Foi somente em 2007, no entanto, após tantos outros mandados de injunção propostos em razão da mesma matéria (MI nº670/ES, MI nº 708/PB e MI n 712/PA), que a Suprema Corte se afastou da orientação inicialmente perfilhada no sentido de estar limitada à declaração da existência da mora legislativa, para adotar uma postura concretista, a qual - na lição de Alexandre de Moraes - consiste na atitude do Poder Judiciário de, através de decisão constitutiva, declarar a omissão legislativa e implementar o exercício do direito até que sobrevenha a edição de lei regulamentadora faltante (MORAES, 2008).

Foi nessa esteira de pensamento que o Plenário do Supremo Tribunal decidiu aplicar ao exercício de greve no setor público, no que couber, a lei de greve vigente no setor privado, a Lei 7.783/89, medida que se mantém até os dias atuais, porquanto a lacuna legislativa referente à matéria nunca foi colmatada. Deste modo, coube ao Judiciário esta forma de “garantir, minimamente, direitos constitucionais reconhecidos” e prover certa proteção efetiva que “não pode ser negligenciada na vivência democrática de um Estado de Direito” (MENDES, 2012, p. 1.775).


3 O DIREITO DE GREVE E O SERVIÇO PÚBLICO

Diante desta breve análise histórica do direito de greve no cenário brasileiro, ficou evidente que o seu exercício no que toca aos servidores públicos está profundamente comprometido, em razão da mora do legislador em regulamentar de forma específica a matéria.

Tal lacuna legal fez com que fossem forçosamente equiparadas – no que tange o exercício do direito de greve – duas classes de trabalhadores que, exatamente pelas particularidades inerentes ao tipo de vínculo empregatício que possuem, foram mantidos em regimes jurídicos diferenciados: o trabalhador celetista e o estatutário.

Era de se esperar, no entanto, que as indefinições e inadequações dessa equiparação trouxessem constantes questionamentos e aquecessem muitos debates acerca da legitimidade do tratamento igualitário desses dois grupos essencialmente distintos. É o que vem ocorrendo no bojo das discussões dos mandados de injunção propostos acerca desse tema - já citados neste trabalho -, que encerram a controvérsia apenas de forma provisória e paliativa, já que a mora legislativa só poderá ser suprida em definitivo quando da efetiva atuação do Poder legiferante competente.

Prova disso é que, recentemente, nova contenda se instalou por ocasião de outra virada jurisprudencial acerca da greve do servidor público. O fato é que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de seus membros, entendeu constitucional o desconto dos dias de paralisação motivada por greve de servidor público, desde que esta não tenha sido provocada por ato ilícito da Administração.

Tal decisão reavivou as discussões sobre o movimento paredista na seara pública, razão pela qual este estudo se propôs a explicitar os principais argumentos que embasam e justificam o posicionamento da Corte Suprema, bem como a clarear conceitos e institutos que, quiçá, sirvam ao convencimento dos que ainda duvidam da legitimidade de tal julgamento.           

3.1 Quem é o Servidor Público?

Para entender quem são os servidores públicos, faz-se mister conceituar primeiro o que vem a ser considerado serviço público. Na lição de José Carvalho Filho, serviço público é:

“Toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 329).

Os serviços públicos, portanto, visam interesses públicos e consistem eles próprios em objetivos do Estado, motivo pelo qual este ente sempre se reserva o poder jurídico de controlar, regulamentar e alterar tais serviços, mesmo que não figure diretamente no polo ativo da sua prestação (CARVALHO FILHO, 2014).

Desse breve conceito, depreende-se que servidor público é, então, qualquer pessoa física que presta serviço ao Estado ou às entidades da Administração indireta, com vínculo empregatício (SOUZA, 2010).

É nesse sentido que preleciona o eminente doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello, que entende que o conceito de servidor público abarca todos aqueles que mantêm com as entidades governamentais vínculo de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual, sob vínculo de dependência (BANDEIRA DE MELLO, 2009).

Esta conceituação de servidor público muito importa ao tema trazido por este trabalho, uma vez que é de grande relevância que esteja nítida a influência que o fato de estar encaixado em tal grupo representa no exercício de direitos e garantias, tal como o de greve. Isto porque o regime jurídico do servidor público estatutário implica na não incidência de certas garantias e certos direitos típicos do vínculo contratual regido pelo direito privado quando estes não se mostrarem compatíveis com a consecução do fim visado pelo Estado, qual seja o interesse da coletividade. Em contrapartida, a esses servidores são asseguradas certas garantias inimagináveis na seara privada.

No tocante ao exercício do direito de greve, por exemplo, é diferente o tratamento dado ao trabalhador da hasta pública e ao trabalhador do setor privado. A previsão constitucional deste direito fundamental para os servidores públicos está contida no art. 37, VII, enquanto é no art. 9º do mesmo dispositivo legal que se encaixa o direito de greve do trabalhador celetista.

Isso se deve exatamente pelo fato de a consecução do interesse público, razão de ser do serviço público, ter supremacia sobre qualquer outro interesse pessoal do trabalhador, ainda que este represente o interesse de uma categoria. Por outro lado, a liberdade de negociação e a autonomia da vontade são marcas fortes do setor privado, algo impossível de se reproduzir na relação entre o Estado e o seu agente encarregado no múnus público, motivo pelo qual se faz inaceitável que estas duas classes de trabalhadores sejam reguladas pelo mesmo diploma legal, como ainda o são.

3.2 O Princípio da Continuidade do Serviço Público e o Direito de Greve do Servidor Público

Na Administração Pública, vigora o princípio da continuidade do serviço público. Na lição de Carvalho Filho, isso significa dizer que:

Os serviços públicos não devem sofrer interrupção, ou seja, sua prestação deve ser contínua para evitar que a paralisação provoque, como às vezes ocorre, colapso nas múltiplas atividades particulares ( CARVALHO FILHO, 2014, p. 339)

Referido princípio é, indubitavelmente, corolário do princípio da supremacia do interesse público, pois, em ambos coloca-se a coletividade acima de qualquer motivação particular, ainda que legítima (LIMA; BELCHIOR, 2008).

No caso das paralisações de servidores públicos:

Afigura-se inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos (CF, art. 9º, caput, c/c o art. 37, VII), de um lado, e o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua (CF, art. 9º, § 1º), de outro (MENDES, 2012, p.1774).

Por isso, é importantíssimo que a ponderação do magistrado que analisa um caso de greve do servidor público perpasse por essa noção de que direitos fundamentais são restritos, limitados, relativos: não são absolutos. Desta feita, o famigerado princípio da proporcionalidade deve atuar como critério interpretativo imprescindível à otimização do sistema de valores consagrados pela Constituição e à solução de matérias conflitivas (LIMA, BELCHIOR, 2008).

No caso em análise, não existindo a lei específica que regulamenta o direito de greve do servidor público, cabe ao Judiciário o dever de examinar a situação concreta e decidir se as paralisações oriundas do direito fundamental de greve do servidor não afrontaram um princípio norteador da Administração Pública (continuidade do serviço público). Dessa forma, o juiz - aplicando o princípio da proporcionalidade - analisará qual direito fundamental deverá prevalecer na situação fática, precedendo àquele outro direito efetivado.

Corroborando este pensamento, a lição de Gilmar Mendes:

De resto, uma sistemática conduta omissiva do Legislativo pode e deve ser submetida à apreciação do Judiciário (e por ele deve ser censurada) de forma a garantir, minimamente, direitos constitucionais reconhecidos (CF, art. 5º, XXXV). Trata-se de uma garantia de proteção judicial efetiva que não pode ser negligenciada na vivência democrática de um Estado de Direito (MENDES, 2012, p.1775).


4 O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 693.456

4.1 Uma Breve Síntese dos Fatos e a Decisão

Em outubro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 693456, com repercussão geral reconhecida, que discutia a constitucionalidade do desconto dos dias parados em razão de greve de servidor público.

Tratava-se, na origem, de mandado de segurança pelo qual os impetrantes, servidores públicos estaduais estatutários, pretendiam que fossem cessados os descontos efetuados pelos dias de paralisação, em razão da adesão a movimento grevista.

Na sentença de primeiro grau, denegou-se a segurança, uma vez que se entendeu não haver ilegalidade no ato administrativo consistente nos descontos efetuados nos contracheques dos impetrantes.

A apelação foi provida, por maioria, para determinar que a autoridade impetrada se abstivesse de proceder às anotações de faltas nos assentamentos funcionais e os descontos nas folhas de pagamento, ou para determinar a expedição de folha de pagamento suplementar com os valores eventualmente descontados. Contra essa decisão foi interposto o recurso extraordinário de relatoria do ilustríssimo Ministro Dias Toffoli, que ora se examina.

Por 6 votos a 4,  concluiu-se que a administração pública deve fazer o corte do ponto dos grevistas, ao passo em que admitiu a possibilidade de compensação dos dias parados mediante acordo. Também foi decidido que o desconto não poderá ser feito caso o movimento grevista tenha sido motivado por conduta ilícita do próprio Poder Público.

Tal decisão desagradou a muitos segmentos da sociedade, que afirmam que o desconto dos dias parados configura-se como um empecilho ao efetivo exercício do direito de greve e, consequentemente, um verdadeiro óbice à luta por melhores condições de trabalho. Isto porque o trabalhador se veria compelido a interromper precocemente a greve, ou mesmo a não começá-la, dado que seu sustento e de sua família seria comprometido.

4.2 Dos Argumentos Embasadores da Decisão

Há alguns pontos – chave a serem analisados neste tópico. São várias as teses elaboradas para defender a constitucionalidade do desconto dos dias parados de servidores públicos em greve, e outras tantas são as soluções apontadas pelos estudiosos do tema para que todos os direitos fundamentais envolvidos no complexo movimento grevista sejam, ainda que minimamente, preservados.

Abordar-se-ão aqui os fundamentos considerados mais esclarecedores, extraídos dos votos ministeriais em sede de julgamento do RE 693.456 e corroborados pela doutrina pátria.

Com a breve explanação que se segue, pretende-se demonstrar que a greve do servidor público, apesar de ser direito social fundamental do cidadão e instrumento de resistência e luta da classe operária, pode vir a se tornar um custo político e social quando não devidamente limitada.

Neste sentido, o trecho do voto do Ministro Eros Grau na relatoria da Rcl 6.568 – Dje 25/09/2009, apontando para a

Necessidade de assegurar-se a coerência entre o exercício do direito de greve pelo servidor público e as condições necessárias à coesão e interdependência social, às quais a prestação continuada dos serviços públicos é imprescindível (GRAU apud TOFFOLI, 2016, p.15)

Isto porque nenhum direito fundamental é absoluto, como já mencionado anteriormente, e o seu exercício não balizado pode afrontar outros direitos fundamentais e causar prejuízos ao bom e saudável funcionamento da máquina estatal.           

Bom, passemos então a uma breve análise desses argumentos.

Em primeiro lugar, insta lembrar que se aplica ao exercício de greve do serviço público, por analogia, o regramento incidente sobre a greve na iniciativa privada (Lei 7.783/89), até que a mora legislativa seja superada.

Esse entendimento fora consagrado por ocasião de julgamentos de Mandados de Injunção anteriores concernentes à matéria (670/ES e 708/DF), e há de ser observado. Segundo aquele diploma legal, nos termos de seu art. 7º, deflagração da greve, em princípio, corresponde à suspensão do contrato de trabalho, como se vê:

Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho (BRASIL, 1989, grifo nosso).

Em seu voto, o Ministro Relator do RE 693.456, Dias Toffoli, ensina que:

Na suspensão não há falar em prestação de serviços, tampouco no pagamento de sua contraprestação. Desse modo, os servidores que aderem ao movimento grevista não fazem jus ao recebimento das remunerações dos dias paralisados, salvo no caso em que a greve tenha sido provocada justamente por atraso no pagamento ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da premissa da suspensão da relação jurídica de trabalho e, por consequência, da atividade pública (TOFFOLI, 2016, p.18).

A suspensão da relação jurídica de trabalho deve implicar no não pagamento do servidor em greve exatamente pela ausência da contraprestação por parte do trabalhador. Nesse sentido, explica Maurício Godinho Delgado que “o principal efeito da suspensão do contrato será, como visto, a ampla sustação das recíprocas obrigações contratuais durante o período suspensivo” (DELGADO, 2016, p.1.186).

Pagar os dias parados corresponderia a um incentivo ou premiação da greve, quando o que se deve buscar é a recomposição mais célere quanto possível das partes em dissídio, buscando benefícios a todos, na medida em que as circunstâncias permitirem.

A qualquer direito exercido corresponde também um dever, um ônus, pois não é justo que apenas um dos lados suporte toda a carga. E o ônus no caso da greve é justamente que, em não havendo trabalho, não deve haver também remuneração, pois caso assim não fosse resultaria num desequilíbrio injustificado entre as partes envolvidas - o empregado, o empregador e a sociedade -, caso em que apenas um dos eixos desse tripé estaria em situação relativamente confortável (já que o próprio fato de ter sido necessária a eclosão de uma greve sugere uma situação desagradável ao trabalhador).

É perfeito o ensinamento do eminente ministro relator a esse respeito, razão pela qual pedimos vênia, para aqui citar, em parte, seu voto:

Com efeito, conquanto a paralisação seja possível, porque é um direito constitucional, ela tem consequências. Esta Corte Suprema já assentou o entendimento de que o desconto dos dias de paralisação é ônus inerente à greve, assim como a paralisação parcial dos serviços públicos imposta à sociedade é consequência natural do movimento. Esse desconto não tem o efeito disciplinar punitivo. Os grevistas assumem os riscos da empreitada. Caso contrário, estaríamos diante de caso de enriquecimento sem causa a violar, inclusive, o princípio da indisponibilidade dos bens e do interesse público (TOFFOLI, 2016, p. 18).

Destarte, conforme frisado acima, a ausência de prestação específica por parte do servidor grevista enseja os descontos dos dias não trabalhados, porquanto não fosse assim, restaria configurado um locupletamento sem causa.

Ao contrário do que defendem alguns, tal medida não tolheria ou impediria o exercício do direito de greve. Isto porque o servidor público goza de estabilidade, estando em condições muito mais favoráveis de exercer tal direito do que o trabalhador da iniciativa privada.

Por fim, reproduz-se excerto do voto do douto Ministro Luís Roberto Barroso, no RE 693.456:

Registro, contudo, que, na minha opinião, o administrador público não apenas pode, mas tem o dever de cortar o ponto. O corte de ponto é necessário para a adequada distribuição dos ônus inerentes à instauração da greve e para que a paralisação – que gera sacrifício à população – não seja adotada pelos servidores sem maiores consequências (BARROSO, 2016, p. 5).

Assim, o corte do ponto do servidor público grevista consistiria num combate ao locupletamento ilícito do trabalhador à custa dos cofres públicos, a plena aplicação da Lei 7.783/89 ao serviço público, bem como a imposição de limites ao exercício do direito de greve e a consequente minimização dos prejuízos políticos, econômicos e sociais que ele acarreta. Isto garante que o interesse público mantenha sua supremacia em relação aos quereres individuais e que o direito de greve possa ser plenamente exercido dentro de parâmetros que possibilitem o normal funcionamento do Estado e o atendimento das necessidades básicas e essenciais de toda a população.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito de greve do servidor público civil, insculpido no art. 37, VII, da Constituição da República, abrange, a um só tempo, os ideais da democracia, da igualdade, da solidariedade e da liberdade. É, portanto, instrumento democrático a serviço da cidadania e da dignidade humana.

No entanto, o exercício de tão estimado direito encontra óbice na inertia deliberandi do órgão legiferante competente, qual seja o Congresso Nacional, que ainda não editou a lei específica que deve regular a matéria, conforme exigência da própria Carta Magna.

Por muito tempo, entendeu-se que a falta da norma não poderia ser suprida judicialmente, numa adesão à corrente não-concretista dos estudiosos dos efeitos e limites do mandado de injunção. Foi somente com o julgamento dos MIs 670/ES 708/DF e 712/PA que a Suprema Corte passou a admitir a aplicação, no setor público, da Lei 7.783/89, diploma que regula a greve da iniciativa privada.

Essa mudança paradigmática na abordagem do tema não solucionou o problema, visto que deu a dois grupos essencialmente diferentes o mesmo tratamento quanto ao exercício do direito de greve. Aproximou-se o servidor público ao trabalhador da iniciativa privada, ignorando que as peculiaridades dessas duas classes impede que eles sejam tratados de forma igual.

Assim, persistiram as críticas e o inconformismo com a abordagem dada à situação provocada pela mora do legislador brasileiro. Nesse cenário, a recente aprovação da tese de repercussão geral, pelo STF, que admitiu o corte de ponto do servidor público grevista gerou alvoroço.

No entanto, após dedicada análise dos princípios norteadores da administração pública e dos interesses maiores do Estado chegou-se à conclusão de que andou bem a Corte Suprema ao decidir nesse viés. Isto porque o direito do servidor público de aderir ao movimento paredista não pode suplantar todos os outros direitos fundamentais da população, que depende de um serviço público eficaz, contínuo e bem prestado.

Assim, há de fato que se limitar um direito fundamental para efetivação satisfatória de tantos outros, sob pena de o servidor público incorrer em um enriquecimento ilícito às custas da máquina estatal, visto que não há na legislação nem na doutrina tese que sustente a percepção de remuneração sem a devida contraprestação, nos casos de suspensão da relação de trabalho.

Conclui-se que, enquanto aguardamos o despertar do legislador brasileiro para essa questão, o Judiciário será ainda competente para julgar os casos de greve do servidor público e analisar, in casu, quais medidas podem ser utilizadas para preservar o direito de grevar e, ao mesmo tempo, um bom funcionamento da máquina pública, buscando sempre equilibrar, entre todos os envolvidos, o ônus intrínseco a esse movimento.


REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 2.ed. ver. ampl. São Paulo: LTR, 2006. p. 1264

BRASIL Lei n 7.783, de 28 de junho de 1989. Dispõe sobre o direito de greve. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 29 jun. 1989. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7783.htm>. Acesso em: 14 dez. 2016.

______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil promulgada e 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 14 dez. 2016.

______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 693.456. Voto do Ministro Dias Toffoli. Disponível em: < http://s.conjur.com.br/dl/voto-toffoli-grevistas.pdf> Acesso em: 7 jan. 2017

______Voto do Ministro Luís Roberto Barroso. Disponível em: < http://s.conjur.com.br/dl/greve-servico-publico-corte-ponto.pdf> Acesso em: 7 jan. 2017

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27.ed. rev. Ampl. São Paulo: Atlas, 2014.

DELGADO, Maurício Godinho. Direito Coletivo do Trabalho. 3.ed. São Paulo: LTr, 2008.

______. Curso de Direito do Trabalho. 15.ed. São Paulo: LTr, 2016.

LIMA, Francisco Gérson Marques de. Greve: um direito antipático. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória, n. 11, p. 53-117, jan./jun. 2012

______; BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Direito de greve do servidor público civil estatutário: uma análise à luz dos direitos fundamentais e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Publicado no XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI/UFBA. Salvador/BA, 19 a 21 de junho de 2008. Disponível em:http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/francisco_gerson_marques_de_lima.pdf. Acesso em: 20 nov. 2016

LIMA, Francisco Meton Marques de Lima. Elementos de direito do trabalho e processo trabalhista. 14 ed. São Paulo: LTr, 2013.

LIMA, José Jefferson de Queiroz. O direito de greve do servidor público e suas repercussões sociais e profissionais na esfera pública e privada. In: Encontro Nacional do CONPEDI. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3024.pdf. Acesso em: 14 nov. 2016

MENDES, Ferreira Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7.ed.rev e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2008

OLIVEIRA, Christiana D’arc Damasceno. (O) Direito do Trabalho Contempoâneo: efetividade dos dieitos fundamentais e dignidade da pessoa humana no mundo do trabalho. São Paulo: LTR, 2010.

QUEIROGA, Vitória dos Santos Lima. Aspectos doutrinários e jurisprudenciais acerca da greve do servidor público: uma análise da decisão do STF ao suprir a omissão do legislativo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 98, mar 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11182&revista_caderno=4>. Acesso em jan 2017.

SOUZA, Humberto Araújo. Direito de Greve no Serviço Público. 2010. 71 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010..



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Hannah. O custo político-social da greve do servidor público e o julgamento do recurso extraordinário 693.456/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4955, 24 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55307. Acesso em: 19 maio 2024.