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Os princípios reitores do direito público e do direito privado e o princípio da autonomia da vontade regrada

Os princípios reitores do direito público e do direito privado e o princípio da autonomia da vontade regrada

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Ementa: 1. À Guisa de Introdução. 2. Conceito e Função dos Princípios do Direito: A Visão Pós-Positivista; 3. A Origem da Divisão Direito Público-Direito Privado; 4. Princípio da Soberania: O Fundamento do Direito Público; 5. Princípio da Autonomia da Vontade: Antigo Fundamento do Direito Privado; 6. A Feição Moderna do Princípio da Autonomia da Vontade: O Princípio da Autonomia da Vontade Regrada.


1. À Guisa de Introdução.

            Infere-se do próprio título do presente trabalho que nos dispomos a discorrer sobre princípios jurídicos que fundamentam o direito público e o direito privado.

            Assim, para se entender o que é o princípio da autonomia da vontade e o princípio da soberania, primeiramente é imprescindível se saber o que são princípios do direito e qual a sua função no ordenamento jurídico. Depois disso, discorreremos sobre os princípios da soberania e da autonomia da vontade. No último tópico, exporemos a nossa compreensão da evolução pela qual passou o princípio da autonomia da vontade e do porquê de o denominarmos de princípio da autonomia da vontade regrada.


2. Conceito e Função dos Princípios do Direito: A Visão Pós-Positivista dos Princípios do Direito

            Se há um campo na ciência do direito que encontrou verdadeiro desenvolvimento teórico-dogmático nas últimas décadas este é o dos princípios do direito.

            No jusnaturalismo, os princípios ocupavam uma função meramente informativa (para valorar como certo ou errado, conforme a norma de direito positivo se conformasse ou não às diretrizes dos princípios), mas sem qualquer eficácia sintática normativa. Já no juspositivismo a função era meramente subsidiária, por conta de uma norma antilacunas clássica em todos os ordenamentos romano-germânicos. Não que se reconhecesse a normatividade dos princípios neste sistema jusfilosófico. Contudo, ante a possibilidade de ruir o dogma da completude do sistema normativo caso não se colmatessem as lacunas que viessem a ocorrer, o que era tão caro ao juspositivismo, optou-se pela adoção de uma aplicação diferida dos princípios somente como forma de solução das lacunas, a saber: não são os princípios que gozam de normatividade, mas a norma que confere competência ao julgador para aplica-los, donde a validade mediata (não são os princípios que gozam de normatividade, mas a norma que os permite serem aplicados).

            Superados os dois sistemas jusfilosóficos, o pós-positivismo, em fins da década de cinqüenta do século passado, se elevou como escola teórico-dogmática em tudo sobranceira, pois vislumbrou a impossibilidade de se abdicar da normatividade dos princípios, fruído a partir do desvendamento do conceito de sistema jurídico aberto, e não autopoiético, como o defendido pelo juspositivismo, orientado por princípios gerais do direito.

            Com efeito, segundo Kant, o sistema é uma "[...] unidade sob uma idéia de conhecimentos variados [...]" ou "[...] um conjunto de conhecimentos ordenado segundo princípios [...]". Ou como o definia Eisler, referindo-se ao sistema lógico:

            [...] 2. Lógico: uma multiplicidade de conhecimentos, unificada e perseguida através de um princípio, para um conhecimento ou para uma estrutura explicativa agrupada em si e unificada em termos interiores lógicos, como o correspondente, o mais fiel possível, de um sistema real de coisas, isto é, de um conjunto de relações das coisas entre si, que nós procuramos, no processo científico, ‘reconstruir’ de modo aproximativo. (grifamos)

            Para esta escola jusdogmática, sendo o direito uma das manifestações da cultura humana (ao lado da língua, da ciência, da religião, da política etc), ele é concebido como um sistema de normas composto por regras e princípios, já que o conceito de sistema lógico, em si mesmo, exige a presença dos princípios para unir os vários elementos que o conformam, sendo que estes fluem do próprio modo de produção da sociedade em que inserido o direito, isto é, os princípios encontram sua fonte de origem nos valores agregados no correr das gerações de uma dada cultura, conformando a compreensão deste povo sobre aquilo que é justo e/ou injusto. Ora, se os princípios conformam a unidade do sistema jurídico, dando-lhe um vetor finalístico (as conhecidas características unidade e ordem), como se não reconhecer a normatividade dos mesmos? Ou em outros termos, não seria uma teratologia conferir aos princípios o papel de liame lógico entre regras sem que sejam, no mesmo passo, normas?

            A resposta somente poderia ser positiva. Da mesma forma que um vegetal não pode gerar um animal, o que não é norma não pode gerar, muito menos fundamentar, uma outra norma.

            Desta sorte, pode-se conceituar os princípios de direito no mesmo molde que feito por Vezio Crisafulli:

            Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam e, portanto, resumem, potencialmente, o conteúdo sejam [...] estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contêm.

            Desta conceituação é possível se extrair as seguintes características dos princípios do direito: a) generalidade; b) primariedade; c) dimensão axiológica; d) objetividade; e) transcendência; f) atualidade; g) poliformia; h) vinculabilidade; i) aderência; j) informatividade; l) complementaridade; e m) normatividade.

            Para o pós-positivismo, sendo os princípios verdadeiras normas, desempenham eles três funções no sistema jurídico, a saber: a) fundamentação, b) norte para a interpretação e c) fonte de supressão de lacunas:

          a)Quanto à função fundamentadora: os princípios desempenham a função de fundamentação da ordem jurídica, gozando de eficácia derrogatória e diretiva. Derrogatória na medida em que as regras que se contraponham à sua orientação carecerão de vigência, e diretiva na medida em que havendo antinomia entre regras e princípios, aquelas perderão a sua validade. Ou seja, o direito encontra o seu esteio nos princípios gerais do direito.

          b)Quanto à função interpretativa: os princípios desempenham, no plano de solução dos problemas constitucionais, o papel de vetores para soluções ótimas e juridicamente adequadas, na medida em que as controvérsias serão solucionadas com fundamento nas normas que desempenham o papel de fundamentação do próprio ordenamento jurídico.

          c)Quanto à função supletiva: neste caso, desempenham os princípios o mesmo papel que lhes reservou o positivismo jurídico, na medida em que servirão para a colmatação de lacunas no ordenamento jurídico, impedindo a adoção de decisões non liquet.

            Embora o gênio de Hans Kelsen tenha se levantado contra tal posição, conforme se infere de suas ilações lançadas na sua mais importante obra – Teoria Geral das Normas -, a teoria pós-positivista fincou de vez as suas raízes, sendo simplesmente impossível desprezar-se as suas bases teorético-dogmáticas se se quiser dilucidar e fundamentar corretamente a natureza dos princípios jurídicos, e com ela os próprios fundamentos da Jurisprudência.


3. A Divisão Direito Público-Direito Privado: Sua Origem Segundo a Dogmática.

            É um tópico dominante na doutrina do direito romano-germânico que o direito, apesar de ser uno e indivisível, posto que conformado em um sistema orientado por princípios gerais do direito, é subdivido em direito público e direito privado.

            Esta divisão encontra a sua razão de ser, para alguns, em face do interesse preponderante veiculado pela norma, segundo o preconizado por Rudolf von Ihering e os sectários da jurisprudência dos interesses, para quem:

            Os conceitos não poderiam ser causais em relação às soluções que, pretensamente, lhes são imputadas: a causalidade das saídas jurídicas deveria ser procurada nos interesses em presença.

            Para outros, no entanto, a divisão encontra o seu fundamento em razão de critérios formal e contenutístico das normas analisadas. Assim, v.g., para Miguel Reale:

            Há duas maneiras complementares de fazer-se a distinção entre Direito Público e Privado, uma atendendo ao conteúdo; a outra com base no elemento formal, mas sem corte rígidos, de conformidade com o seguinte esquema, que leva em conta as notas distintivas prevalecentes:

 

             

            Quanto ao Conteúdo ou objeto da relação jurídica

            a-1) Quando é visado imediata e prevalecentemente o interesse geral, o Direito é público;

            a-2) Quando imediato e prevalecente o interesse particular, o Direito é privado.

             

            Quanto à forma da relação

            b-1) Se a relação é de coordenação, trata-se, geralmente, de Direito Privado;

            b-2) Se a relação é de subordinação, trata-se, geralmente, de Direito Público.

            A maior parte da doutrina encontra a origem da dicotomia direito público-direito privado no próprio direito romano.

            Com efeito, a doutrina colhe no Digesto 1.1.1.2. de Ulpiano o fundamento histórico para o tratamento diferenciado. Eis o seu teor: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem", que em vernáculo quer significar: "O direito público diz respeito ao estado da coisa romana, a polis ou civitas; o privado à utilidade dos particulares".

            Assim, na medida em que o direito público relacionava-se à cidade romana, vigoraria um princípio a lhe fundamentar sua existência, do mesmo modo em que, sendo o direito privado relacionado àquilo que tocava a satisfação de interesses dos particulares, demandaria um outro princípio.

            Contudo, somente com o surgimento do direito moderno (mais precisamente com o jusnaturalismo e o liberalismo) é que a dicotomia ganhou o status de verdadeiro dogma.

            Com efeito, para a sociedade burguesa nascente, importava que o Estado somente se ocupasse da administração da coisa pública, criando condições para que o particular, o empreendedor, o industriário, explorasse os meios de produção econômica de forma livre. Ao Estado se impunha a função de organização da nação e pacificação da sociedade, defesa do território, recolhimento dos tributos, imposição de penas, administração do espaço público, expedição de moedas, e o mais importante, a criação de regras jurídicas claras e objetivas que conferissem segurança jurídica para o homem poder transacionar com o seu próximo, enquanto que a economia seria necessariamente explorada pelo burguês. Não se pode perder de vista, entretanto, a função garantística de tal divisão, na medida em que o Estado Moderno surge como anteposição ao Estado Antigo, como seja, ao Estado Totalitário, em que tudo estava dependente da vontade do soberano.

            Neste sentido, eis o que ensina o mestre teuto Gustav Radbruch:

            Mas o que vem a ser direito público, o que é direito privado? Contentemo-nos com esta constatação: quando uma obrigação é fundamentada na ordem de um terceiro, ela é regularmente direito público, ao passo que obrigações de direito privado surgem regularmente de auto-sujeição do compromitente: pagar impostos e prestar serviços como jurado é-se obrigado a fazer, quer se queira, quer não; pagar objetos comprados e desempenhar determinadas tarefas só se faz por ter-se assumido as conseqüências decorrente de um contrato de compra e venda ou de trabalho. As relações jurídicas entre pessoas que se encontram em situação de supremacia e sujeição, em outras palavras: relações jurídicas entre soberano e súdito, são objeto do direito público; o direito privado somente se ocupa de relações jurídicas entre juridicamente iguais.

            A base teórica se fundamentou em três dogmas, a saber: a) a sacralidade da propriedade, b) a liberdade total e irrestrita do direito de contratar, e c) a exclusividade da produção econômica em mãos do particular.

            Assim, o vero fundamento da dicotomia que ora se trata não se prende, em verdade, numa dúplice natureza do direito, mas antes na necessidade de se criar condições ao pleno desenvolvimento da economia de industria que então nascia, o que demandava, em último grau, uma intervenção mínima do Estado no plano econômico.

            A divisão surgiu, então, como um projeto ideológico, como no-lo informa Hans Kelsen:

            Uma análise crítica mostra, no entanto, que esta distinção não tem qualquer fundamento no Direito positivo – pelo menos na medida em que não se limita a afirmar que a atividade dos órgãos legislativos e administrativos é em geral vinculada pelas leis num grau menor do que a atividade dos tribunais, que a estes é pelo Direito positivo quase sempre conferida uma menor margem de livre apreciação do que àqueles, mas pretende significar algo mais. Esta doutrina de uma essencial distinção entre Direito público e privado enreda-se, além disso, na contradição de afirmar a liberdade (desvinculação) perante o Direito (Freiheit vom Recht) – que reclama para o domínio do "Direito" público enquanto domínio da vida do Estado – como princípio de Direito (RechtsPrinzip), como a característica específica de Direito público. Eis porque ela somente poderia falar, quando muito, de dois domínios jurídicos configurados de maneira tecnicamente diversa, mas não de uma oposição essencial, absoluta, entre Estado e Direito. Este dualismo – de todo logicamente insustentável – não tem, porém, qualquer caráter teorético, mas apenas caráter ideológico.

            Contudo, não se pode perder de vista que tal "ideologia" se sedimentou na cultura jurídica de índole romano-germânica, conforme aponta a lição de José Antônio Pimenta Bueno, o mais abalizado exegeta da Constituição de 1824, para quem, já em sua época, o direito necessariamente expressava esta "necessária e natural" atomização:

            Com efeito, desde que o homem se reúne em sociedade, não pode deixar de reconhecer que é preciso que esta goze de segurança, de ordem, de meios para seu progresso; e que ele deve concorrer para a felicidade da comunidade social de que faz parte: esse é o interesse geral. Entretanto, quando se associa, o homem não renuncia às suas liberdades, aos seus direitos individuais, não se destina, resigna ou sacrifica a ir ser uma máquina, a viver ou trabalhar só para o serviço social, nem isso é necessário ao Estado; reserva a sua inteligência e faculdades, o direito de suas relações privadas, o arbítrio supremo de seus negócios, dos meios naturalmente lícitos de procurar o seu bem-ser: esse é o interesse ou seu direito particular; e para garantir o gozo dele é que o homem se associa. [...] A razão e a ciência de todos os países civilizados procuram distinguir e separar as relações, em que o interesse individual poderia contrariar direta ou indiretamente o interesse público, e em que por isso mesmo deveria ceder o passo a este, e aquelas em que por não afeta-lo, ou somente afetar mediada ou secundariamente, deveria ser independente, livre, entregue à inteligência e vontade do indivíduo.

            Não se há de duvidar da concepção kelseniana, como seja, que inicialmente a dicotomia se apresentou mais por uma questão ideológica. Contudo, ao fim e ao cabo, ela se mostra indispensável para o estudo sistemático do direito, ou mesmo para a melhor compreensão da experiência jurídica, embora, repita-se, a divisão se prende mais a uma questão metodológica e propedêutica.

            Desta sorte, no plano meramente formal, observa-se que as normas de direito público veiculam ditames da ordem política, e as de direito privado exclusivamente de ordem patrimonial. Assim, enquanto que no direito público o fundamento principiológico é a soberania do Estado, no direito privado o fundamento é a autonomia da vontade, como seja, a liberdade dada ao homem de se vincular por meio de relações jurídicas contenutisticamente patrimoniais.


4. Princípio da Soberania: O Fundamento do Direito Público.

            Quando se analisa no plano dogmático a atomização do direito em público e privado, não se pode perder de vista que tal dicotomia somente tem campo de incidência onde existir o Estado. Ocorre que o direito não surge com o Estado – referimo-nos à experiência jurídica e não ao direito positivo, este sim originado no Estado -, mas sim no primeiro momento em que o homem decidiu se unir com outro/outros homem/homens em bando, surgindo desta união a necessidade de se criarem regras de conduta para a convivência pacífica entre eles, tendo por norte o conhecido princípio alterum non laedere.

            É com o surgimento do Estado – e aqui não cabe discorrer sobre o fator preponderante de origem do Estado, se a religião, se a unidade nacional, se o poder político ou se à vontade das nações civilizadas, bastando ver, no plano histórico, que todos estes elementos foram vetores de união e criação dos mais diversos Estados, como o denuncia o caso do povo judeu, unidos pela crença na escolha por Iavé, portanto um fator religioso; o caso inglês, que adveio da unidade nacional no plano das tradições seculares; o caso alemão, advindo do poder político-militar de Bismarck; e o recente caso de Timor Leste, cuja independência nacional se alcançou pelo reconhecimento das Nações Unidas -, orientado pelas necessidades de independência nacional, auto-organização política da nação e pela necessidade de subordinar o povo de um dado território a uma fonte comum de normas jurídicas, é que surge o direito público, ou o direito ordenador do Estado e das relações do Estado, como o ensina Afonso Arinos de Melo Franco:

            A verdade é que o Direito Público, predominantemente relacionado com a personalidade jurídica do Estado, com os seus interesses, instituições e órgãos, requer um método de estudo, uma formulação normativa e um processo de aplicação que lhe são próprios.

            Como fica claro do que acima foi dito, inexistiria direito público sem que um dado povo gozasse de soberania, como seja, o poder de auto-ordenação adquirido no plano internacional. Com efeito, a soberania se exercita para fora do Estado, por meio da independência nacional, ou seja, a não subordinação a nenhum outro centro de competência normativa, e no plano interior por meio da imposição de observância das regras jurídicas editadas pelo Estado sob pena de sanção às condutas contrárias às leis editadas. Esta soberania é exercida pelo ente jurídico criado pelo próprio ordenamento normativo, a saber, o Estado, por meio de sua mais elevada norma: a Constituição. Assim, a Constituição ocupa não somente a primazia das fontes do direito público (e do privado também, segundo a teoria escalonada das normas de Kelsen), como, em verdade, é o seu verdadeiro fundamento.

            Assim, resta evidente que o princípio norteador do direito público é o princípio da soberania, como o deixa evidente a lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior:

            O princípio máximo do direito público é o princípio da soberania. Trata-se de uma noção que, historicamente, apresentou várias conotações. De modo geral, corresponde à efetividade da força, pela qual determinações de autoridade são observadas e tornadas de observação incontrastáveis pelo uso inclusive de sanções, de um ponto de vista interno. De um ângulo externo, no confronto das soberanias, corresponde a uma não-sujeição a determinações de outros centros normativos. É, em síntese, o caráter originário e independente da capacidade de determinar, num âmbito definido de atuação, a relevância ou a irrelevância de qualquer outro centro normativo que ali atue. No direito contemporâneo, afirma-se que soberana é a lei, por força da constituição, que encarna a vontade social, e que confere ao Estado e aos seus entes públicos de modo geral a competência para editar atos soberanos, isto é, dotados de jus imperii.

            No plano positivo verifica-se a procedência desta lição, ex vi do disposto nos artigos 1º, incisos I e II e 4º, incisos I, III, IV e V, da Constituição brasileira de 1988:

            Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito, e tem como fundamentos:

            I – a soberania;

            II – a cidadania; [...].

            Artigo 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

            I – independência nacional; [...]

            III – autodeterminação dos povos;

            IV – não-intervenção;

            V – igualdade entre os Estados; [...].

            Tal princípio se auto-explica, uma vez que o Estado limitado em sua soberania, soberano não é. E sem soberania não existe Estado, pois a abdicação do poder de autoconstituição e autogoverno significa a corrosão do próprio fundamento que dá gênese ao Estado em questão. A correlação, desta sorte, é lógica e imprescindível.

            Desta sorte, o direito público, num primeiro momento, se refere às normas que conformam o próprio Estado, como seja, às normas constitucionais que o criam e o organizam, mediante a divisão das funções soberanas – legislativo, executivo e jurisdicional -, repartição das competências, limitação do próprio poder do Estado, mediante a previsão de normas garantísticas da liberdade do cidadão. Num segundo momento, o direito público é composto por normas que regulamentam a atuação do Estado em sua multifacetária rede de relações: o Estado Nacional e os demais Estados, entre órgãos do Estado, entre órgãos do Estado e os cidadãos etc.

            Assim, orientando-se pelo plano teorético dado por Miguel Reale, o direito público é complexo de princípios e regras jurídicas – orientados pelo princípio da soberania – que regulamenta: a) a criação e o modo de exercício dos poderes públicos, b) as relações do Estado enquanto pessoa soberana no plano internacional, c) a atuação do Estado quando esteja em jogo o interesse coletivo, d) quando, enfim, esteja em plano de incidência, a aplicação de regras subordinantes, como seja, normas cogentes que se aplicam a toda e qualquer pessoa – inclusive ao Estado -, tendentes à preservação do interesse comum, finalisticamente direcionadas ao estabelecimento e mantença do bem comum.

            Exemplos destas normas nós podemos encontrar em temas tão variados como as regras processuais e as normas tributárias, o direito penal e o direito eleitoral, nas regras procedimentais da criação das fontes normativas e no regulamento da administração pública etc.

            Assim, como no-lo diz Simone Goyard-Fevre, o direito público compõe-se de regras jurídicas tendentes a organizar, condicionar e limitar o poder político, na medida em que elas

            [...] são a trama complexa, ainda que elaboradas de forma lógica, a partir da qual se tecem os acontecimentos da vida política dos povos e através da qual eles adquirem sentido na substância do mundo; elas orientam os comportamentos e as decisões do Estados, impondo uma disciplina, linhas de força e uma ordem às diversas representações e manifestações da existência política. Não há política que não requeira sua organização jurídica por meio de um corpus de regras cuja vocação é, a um só tempo, a de uma ordem-ordenamento que fixa as relações formais entre as normas constitutivas do sistema e uma ordem-comando que expressa a autoridades de que está investida essa instância política. Sistematicidade e normatividade são as duas características conjuntas e indissociáveis da ordem jurídica que estrutura o estofo da vida pública, dando forma e validade a seus conteúdos substanciais [...] sua vocação é, em primeiro lugar, organizacional: confere à diversidade dos fenômenos do mundo político um arranjo lógico e coerente que acompanha a organização racional dos poderes públicos consoante valores e exigências homogêneas. Conseqüentemente, o poder político, longe de se manifestar como uma simples potência que se exerce em circunstâncias particulares e contingenciais, em meio a tensões inevitáveis, é, ao mesmo tempo, condicionado formalmente pelo direito e limitado por ele, já que é nele que encontra seus critérios de validade. Entretanto, o ordenamento jurídico da política não poderia significar, portanto, a vacuidade – nem seu imobilismo rígido, isto é, a institucionalização estática, portanto, o caráter definitivo. O direito político evolui – e deve evoluir – de acordo com os problemas criados pela movimentação histórica e pelo progresso da sociedade.

            Em suma, é o poder de auto-ordenação e de subordinação do/pelo Estado que vigora no ramo do direito público, orientado pelo princípio da soberania.

            Contudo, não se pode perder de vista a limitação intra-sistêmica ao exercício da soberania, segundo os postulados do Estado Democrático de Direito.

            Com efeito, tendo o Estado Moderno por matriz o Estado Liberal dos séculos XVII e XVIII, não se concebe que o próprio Estado, ou o Soberano exerça de forma ilimitada o poder estatal em face dos cidadãos, devendo, portanto, ser um poder limitado: Qual é esta limitação?

            Sendo o Estado Democrático de Direito, a limitação encontra fundamento no princípio da legalidade, como seja, o poder estatal encontra limitação nas próprias leis que edita, por meio do Poder Legislativo, que segundo a doutrina clássica do liberalismo, é o corpo de representantes do povo. Não basta que o poder seja limitado pela lei, pois, com efeito, bastaria se optar por um conceito material de lei para se fundamentar o exercício arbitrário do poder, como o fazem os estados totalitários modernos. É imprescindível que a lei que a venha a limitar as liberdades civis provenha do Poder Legislativo, já que, na democracia representativa, da qual o Brasil é um exemplo claro, o mandato parlamentar confere aos membros do órgão legislador a legitimidade de criar tais limitações, como seja, assentindo os mandantes, pressupõe-se o assentimento dos mandatários.

            Assim, é o princípio da legalidade o ponto de limite e garantia dos direitos e liberdades civis em face do poder estatal, já que em caso de inobservância, o ato será irrecusavelmente nulo, cuja eficácia será ex tunc.

            Veja-se, neste sentido, a lição de Riccardo Guastini:

            Em geral, "legalidade" significa conformidade à lei. Chama-se "princípio da legalidade" aquele em virtude do qual "os poderes púbicos estão sujeitos à lei", de tal forma que todos seus atos devem ser conforme a lei, sob pena de nulidade. Dito de outra forma: são nulos todos os atos dos poderes públicos que não sejam conforme a lei. Entende-se que esta regra se refere especialmente – ainda que não de forma exclusiva – aos atos do Estado que podem incidir sobre os direitos subjetivos (de liberdade, de propriedade etc) dos cidadãos, limitando-os ou extinguindo-os. Enquanto tal, o princípio da legalidade tem uma evidente função garantística.

            Desta sorte, sendo o princípio da soberania o fundamento do direito público, este mesmo princípio – como é próprio da sistematicidade do ordenamento jurídico – encontra limitação no princípio da legalidade.


5. Princípio da Autonomia da Vontade: Antigo Fundamento do Direito Privado.

            Sendo o direito público umbilicalmente ligado à existência do Estado, o direito privado encontra sua primeira condição de existência numa espécie de Estado, a saber: o Estado capitalista.

            Numa primeira análise, tal assertiva parece incompatível com a evolução histórico-jurídica da sociedade humana, pois o capitalismo surge, como ideologia econômica, por volta dos séculos XVI e XVII.

            No entanto, volvendo o nosso olhar para os períodos que antecedem tais limites, ver-se-á que a sociedade humana sempre se organizou pelo modo capitalista, como seja, sempre reconheceu aos homens o direito de propriedade, a liberdade de contrato, a livre disposição da propriedade (os conhecidos ius utendi, fruendi, abutendi e reivindicatio do direito romano), sendo o exercício da mercancia um dos mais antigos labores do homem. Com efeito, não se pode falar em sistema capitalista de produção (não nos referimos ao capitalismo moderno, mas sim ao exercício de atos de troca, venda e compra de bens e serviços com o objetivo de lucro) sem que ao homem seja reconhecido o direito de propriedade.

            Pois bem. Num Estado de economia planificada (socialista) é impossível se falar em livre disposição de propriedade, pois esta, deveras, não existe. Todos os meios de produção pertencem ao Estado, que os administra sob os programas "em nome e em benefício da classe trabalhadora".

            Neste sentido, colha-se o exemplo da República de Cuba:

            Artigo 1. Cuba é um Estado socialista de trabalhadores, independente e soberano, organizado com todos e para o bem de todos, como república unitária e democrática, para o desfrute da liberdade política, a justiça social, o bem-estar individual e coletivo e a solidariedade humana.

            [...]

            Artigo 9. O Estado:

a-realiza a vontade do povo trabalhador e

- processo os esforços da nação na construção do socialismo;

- mantém e defende a integridade e a soberania da pátria;

- garante a liberdade e a dignidade plena do homem, o desfrute de seus direitos, o exercício e cumprimento de seus deveres e o desenvolvimento integral de sua personalidade;

- afiança a ideologia e as normas de convivência e de conduta próprias da sociedade livre da exploração do homem pelo homem;

- protege o trabalho criador do povo e a propriedade e a riqueza da nação socialista;

- dirige planificadamente a economia nacional;

- assegura o avanço educacional, científico, técnico e cultural do país;

            [...]

            Artigo 11. O Estado exerce sua soberania:

a)sobre todo o território nacional, integrado pela Ilha de Cuba, a Ilha da Juventude, as demais ilhas e ilhotas adjacentes, as águas interiores e o mar territorial na extensão que fixada pela lei e o espaço aéreo que sobre estes se estende;

b)sobre o meio ambiente e os recursos naturais do país;

c)sobre os recursos naturais, tanto vivos como não-vivos, na extensão fixada pela lei, em conformidade com a prática internacional.

            A República de Cuba repudia e considera ilegais e nulos os tratados, pactos e concessões pactuados em condições de desigualdade ou que desconheçam ou diminuam sua soberania e sua integridade territorial.

            Verifica-se sem muito esforço que o princípio da autonomia da vontade não encontra guarida no sistema socialista cubano, na medida em que: a) a economia é planificada, como seja, os meios de produção econômica estão em mãos do Estado; b) os bens materiais e imateriais pertencem ao Estado Cubano; c) encontra-se vedada à ocorrência da exploração econômica em mãos do particular, pois tal demandaria "la exploración del hombre por el hombre".

            Assim, somente se há de falar em princípio da autonomia da vontade frente a um ordenamento jurídico que se constitua em estado de produção capitalista, ou seja, aquele que assegura a plena liberdade de produção econômica nas mãos do particular, tendo como paradigma primeiro o reconhecimento do direito de propriedade, na medida em que o direito privado tem como exclusividade o patrimonialismo.

            Eis o que a respeito ensinou Clóvis Bevilaqua, em seu "Direito das Obrigações":

            Tomemos o conselho do mestre, de methaphysica non sis solicitus, e volvamos a vista para outros horizontes. STUART MILL nos dará a chave do enigma julgado insoluvel. Não ha outro fundamento asssignalavel á obrigação, garante-nos elle, senão as funestas consequencias da falta de fé e da ausencia de confiança mutua entre os homens. Por outros termos, é o interesse da sociedade, harmonizando-se com o dos indivíduos o fundamento ultimo das obrigações. E, com o glorioso publicista e philosopho inglez, se mostram de accordo d’AGUANO, PIETRO COGLIOLO e GABRIEL TARDE. Apreciem-se os fatos, em rapida analyse embora, e ter-se-á tirado a prova real desta theoria. É o interesse de cada que o induz a realizar compras, vendas, empréstimos, locações, e é porque essa vantagem se torna ponto de convergencia de muitos interesses que é possivel a realização desses actos. Sem tal convergencia, o egoísmo de cada individuo agitar-se-ia no vacuo, impotente, inutil. Verificada ella, porém, como a sociedade tem o maximo interesse na produção dessa troca de serviços, na combinação desses esforços, nessa divisão do trabalho, presidida e guiada pela teleologia social, intervem pelo orgão do poder publico e pelo da opinião dominante, para tornar effectivos e producentes actos, de que dependem, evidentemente, a sua vida e cultura, e pela qualidade dos quaes se póde aferir a sua opulência. (sic)

            O Brasil, como se verifica dos seguintes dispositivos da Lei Maior de 1988 abaixo citados, adotou o sistema capitalista de produção. Não no modo preconizado pelo liberalismo do século XVIII, mas sim um capitalismo em que a produção econômica tem por escopo a promoção do bem comum, por meio da circulação e distribuição das riquezas:

            Artigo 1º [...]:

            [...]

            IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

            [...].

            Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

            [...]

            XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

            [...]

            XXII – é garantido o direito de propriedade;

            [...]

            XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissíveis aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

            [...]

            XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industrias privilégios temporários para sua utilização, com como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes das empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

            XXX – é garantido o direito de herança;

            [...]

            XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

            [...]

            XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

            [...]

            LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

            [...]

            Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

            [...]

            II – propriedade privada;

            [...]

            IV – livre concorrência;

            V – defesa do consumidor;

            [...].

            Com efeito, logo no primeiro dispositivo constitucional (artigo 1º, inciso IV), o constituinte deixou transparecer claramente a sua opção pela forma capitalista de produção, pois a junção dos "valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" num mesmo dispositivo, indica, em último grau, a plena liberdade de exploração da economia pelo particular, sem que o Estado nela intervenha, à exclusão dos casos em que a própria Constituição o permita (artigo 173).

            No entanto, não se pode perder de vista que tal enunciado não se reduz à mera afirmação do modo capitalista individualista, mas num capitalismo em que tanto o individualismo como o coletivismo (v.g. cooperativas) encontra plena liberdade para atuar.

            Neste sentido, eis o que ensina o Professor Eros Roberto Grau:

            Dir-se-á, contudo, que o princípio, enquanto fundamento da ordem econômica, a tanto se reduz [à confirmação do modo capitalista de produção]. Aqui também, no entanto, isso não ocorre. Ou – dizendo-se de modo preciso -: livre iniciativa não se resume, aí, a "princípio básico do liberalismo econômico" ou a "liberdade de desenvolvimento da empresa" apenas – à liberdade única do comércio, pois. Em outros termos: não se pode visualizar no princípio tão-somente uma afirmação do capitalismo. Insisto em que a liberdade de iniciativa econômica não se identifica apenas com a liberdade de empresa. Pois é certo que ela abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas [...].

            Na mesma direção segue a lição de Washington Peluso Albino de Souza:

            Temos, portanto, o sentido de "liberdade econômica" diferenciado de "liberdade" em geral, que nas Constituições liberais era assegurado sem restrições. Nelas ficaram configurados, portanto, os princípios do liberalismo capitalista, enquanto nas posteriores o seu condicionamento se fez ligado à "existência digna", em visão social mais ampla. Valorizando a liberdade individual que os dispositivos liberais consideravam uma seqüência natural do funcionamento social, adicionava-lhe a conotação econômica em sede de cogitação constitucional, para que jamais pudesse vir a ser comprometida por falta desse embasamento.

            De modo que, cotejando-se as duas lições acima verbalizadas, podemos concluir que: a) o princípio da autonomia da vontade é uma norma que somente tem existência num ordenamento jurídico ideologicamente optante pelo modo de produção capitalista, onde o direito de propriedade é assegurado por técnicas oportunas de proteção a este direito, b) no Brasil, o constituinte optou por tal modelo, encontrado, portanto, o princípio da autonomia da vontade fundamento de ordem constitucional-ideológico, pois, são as normas de "Direito Privado as que consistem em relações econômica, qualquer que seja a natureza dos interesses, particulares ou gerais, que envolvam e qualquer que seja a natureza, privada ou pública, do sujeito agente".

            Mas o que vem a ser, no final das contas, o princípio da autonomia da vontade? Qual o seu conteúdo normativo a servir de fundamento ao direito privado?

            O Código Civil de 1916, em seu artigo 1º, prescreve que "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil"; por seu turno, o Código Civil de 2002, quem entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, em seu artigo 2º, prescreve: "Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil".

            Os dois dispositivos, ao fazerem alusão à capacidade do homem de exercer direitos e suportar obrigações, têm como fundamento, no plano jurídico, a liberdade de atuação conforme a lei, segundo o princípio "tudo o que não é vedado, é permitido". Já no plano filosófico, têm como fundamento o livre arbítrio, segundo o qual, todos os homens têm a capacidade moral de optarem entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o ético e o imoral...

            A toda evidência, então, que a expressão "autonomia da vontade" expressa a existência de duas formas de exercício da liberdade, a saber: a liberdade-autonomia, como seja, aquela liberdade que não encontra obstáculo ao seu exercício, no caso, a existência de uma lei proibitiva ou mandamental, que seriam as cláusulas de vedação ao facere ou non facere, e a liberdade-escolha, pois somente quem é livre pode optar, escolher, sendo que a vontade se exercita em face daquilo que é externo ao homem e lhe é posto à apreciação. A pessoa livre pode escolher entre comprar ou não comprar, casar-se ou não se casar, residir neste ou naquele local. Já a pessoa que não tem liberdade de escolha, como é o caso do absolutamente incapaz, ou mesmo dos escravos, como no-lo afirma a história, não se lhe dá a opção de compra, de matrimônio ou de domicílio. Autonomia da vontade, assim, é a conjuminação entre liberdade-autonomia e liberdade-escolha.

            Com efeito, é o livre arbítrio o fundamento filosófico do liberalismo, na medida em que ao homem é reconhecida a capacidade de escolha entre os caminhos que pretenda trilhar. Não cabe neste momento, evidentemente, discorrer-se sobre o livre arbítrio sob os mais variados matizes filosóficos ou teológicos, bastando lembrar que para o calvinismo, com a queda adâmica, o homem maculou o livre arbítrio com o gene do pecado. Todas as suas escolhas, a partir de então, estarão contaminadas pela opção daquilo que satisfaça as suas concupiscências, pois o seu caráter foi irremediavelmente transformado pelo pecado, que lhe passou a ser natural.

            Tendo, pois, o direito privado por finalidade as relações econômicas entre os homens, evidentemente que o princípio da autonomia da vontade é o fundamento do principal instrumento de vinculação, a saber, o contrato. Orlando Gomes, acerca do tema, disse o seguinte:

            A liberdade civil encontrava campo para expandir-se ao se exprimir juridicamente no contexto da autonomia privada. Garante-se a liberdade de contratar, para que os homens possam vincular-se suscitando os direitos e obrigações que entenderem convenientes a seus interesses. (grifos no original)

            E a liberdade contratual, segundo aponta o mesmo doutrinador, se manifesta de três modos: a) liberdade de celebrar contrato, b) liberdade de escolher o outro contratante, e c) liberdade de determinar o conteúdo do contrato, todas elas fundamentadas na autonomia da vontade.

            Note-se que a vontade, por haurir fundamento na própria liberdade moral e jurídica do homem, e sendo esta um direito inviolável da pessoa humana, ao lado do direito à vida, é o principal elemento do ato jurídico.

            Assim, a doutrina é consentânea em afirmar que, para além daqueles elementos veiculados no artigo 82 do CC/1916, ou no artigo 104 do CC/2002, existe aquele imanente, que flui do sistema privatístico, a saber: a vontade livre e desimpedida.

            Por isso que, quando a vontade é viciada, o ato jurídico é anulável, com eficácia ex nunc, quando inexistente, nulo, com eficácia ex tunc.

            Evidentemente que a própria modificação da razão jurídica tendeu a minorar os efeitos do princípio da autonomia da vontade, na medida em que a este se dava o caráter de sacralidade, como o deixa ver o princípio da "pacta sunct servanda", segundo o disposto no artigo 1.134 do Código Civil francês: "[...] as convenções legalmente formadas têm o valor das leis para aqueles que a fizeram". Contudo, o intervencionismo do estado na economia, o dirigismo contratual, a necessidade de se frear o abuso do poder econômico, a necessidade de se adequar o exercício da propriedade aos limites do razoável e do socialmente útil, tenderam, no século XX a minorar a eficácia do princípio da autonomia da vontade em suas mais variadas manifestações, o que resultou excelente para a própria afirmação do direito como fator de ordenação social. Assim, nos dias que correm, em certos temas do direito privado parece-nos vigorar, em substituição àquele já mencionado, o princípio da autonomia da vontade regrada.


6. A Feição Moderna do Princípio da Autonomia da Vontade: O Princípio da Autonomia da Vontade Regrada.

            Como visto, o direito brasileiro optou pela adoção do modo capitalista de produção, razão pela qual, primeiramente, encontra fundamento a dicotomia direito público-direito privado, e segundamente, a existência do princípio da autonomia da vontade, que fundamenta este último.

            No entanto, com o afastamento do pensamento liberal-individualista dos séculos XVII e XIX, e mesmo do início do século XX, o Estado se viu obrigado a intervir de forma mais efetiva na economia, seja de forma direta, explorando e produzindo bens e serviços, seja de modo diretivo, como seja, impondo limites ao exercício da liberdade de contratar e à fruição do direito de propriedade.

            Pois bem. A intervenção direta do Estado na economia gera aquilo que pretendemos denominar de princípio da autonomia da vontade regrada, que quer significar, basicamente, a oposição de barreiras, de proibições e limitações ao exercício pleno do direito de propriedade, na concorrência econômica, na formulação dos contratos, em especial no razoavelmente novo ramo do direito, o direito do consumidor.

            Vejamos alguns exemplos na Constituição da República.

            No artigo 5º, incisos XXII e XIII, logo após a Carta Magna prescrever que o direito de propriedade está assegurado, impõe a seguinte limitação: "[...] a propriedade atenderá a sua função social [...]".

            Lembremo-nos que a doutrina liberalista do direito considerava o direito de propriedade como sendo sacro, como seja, ilimitável, manifestado no quadrinômio ius utendi, fruendi, abutendi e reivincatio, ou seja, direito de usar, gozar, dispor e reivindicar o bem objeto de propriedade. Estas formas de expressar o direito de propriedade significavam que o bem poderia ser utilizado da forma que o proprietário bem quisesse, sem que houvesse qualquer forma de limitação a este direito, a não ser aqueles decorrentes da própria moralidade pública e do direito de vizinhança.

            Com o ruir do liberalismo, em especial com o surgimento do welfare state, a propriedade passou a sofrer inúmeras limitações, principalmente aquelas que implicam no seu uso racional e socialmente útil, gerando riquezas em proveito de todos e não somente do proprietário.

            A Constituição dos Estados Unidos do México de 1917 foi uma das primeiras constituições a expressar norma equivalente, in verbis:

            Artigo 27 – A propriedade das terras e águas compreendidas dentro dos limites do território nacional, pertencem originariamente à nação, a qual teve e tem o direito de transmitir o domínio delas aos particulares, constituindo a propriedade privada.

            As expropriações somente poderão ocorrer em caso de utilidade pública e mediante indenização. A nação terá a todo tempo o direito de impor à propriedade privada as características que o interesse público ditar, assim como o de regular, em benefício social, o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de apropriação, como forma de fazer uma distribuição eqüitativa da riqueza pública, cuidar de sua conservação, obter o desenvolvimento equilibrado do país e o melhoramento das condições de vida da população rural e urbana. Como conseqüência, fixar-se-ão as medidas necessárias para ordenar os assentamentos humanos e estabelecer provisões adequadas, usos, reservas e destinos de terras, águas e bosques, para efeito de executar obras públicas e de planejar e regular a fundação, conservação, melhoramento e crescimento dos centros populacionais; para preservar e restaurar o equilíbrio ecológico; para o fracionamento dos latifúndios; para dispor, nos termos da lei regulamentar, a organização e exploração coletiva dos campos e comunidades; para o desenvolvimento da pequena propriedade rural; para o fomento da agricultura, da pecuária, da silvicultura e das demais atividades econômicas no meio rural, e para evitar a destruição dos elementos naturais e os danos que a propriedade possa sofrer em prejuízo da sociedade [...]

            Desta sorte, a propriedade, no Brasil, sofre inúmeras limitações de ordem pública, seja quando se impõe ao proprietário de imóvel urbano o dever de adequar e utilizar o imóvel em conformidade com o regramento urbanístico da cidade (plano diretor), sob pena de sofrer tributação progressiva sobre a propriedade do imóvel, e depois de vencidos cinco anos, ter o bem imóvel desapropriado por títulos da dívida pública (artigo 182, §§ 2º e 4º da CR c/c artigos 5º 7º e 8º da Lei 10.257/2001, dito Estatuto da Cidade), seja quando se impõe ao proprietário de terras rurais o uso socialmente útil da sua propriedade, que somente ocorre quando ele a explora observando os seguintes requisitos: a) aproveitamento racional e adequado, b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, c) preservação do meio ambiente, d) observância das disposições concernentes ao direito dos trabalhadores rurais, e e) exploração dos recursos naturais de modo que beneficie o proprietário e os seus trabalhadores (artigo 186 da CR). A inobservância destes requisitos acarreta o dever da União desapropriar o imóvel sem que o proprietário tenha direito a prévia indenização em dinheiro, mas antes em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até 20 (vinte) anos (artigo 184 da CR), ou mesmo quando se impõe ao proprietário de imóvel ou bem de conteúdo histórico, artístico ou cultural o dever de preserva-lo, havendo ou não tombamento por parte do poder público (artigo 216, inciso V, §§ 2º e 4º da CR c/c artigos 1º e 2º do Decreto Lei nº 25/1937).

            No que diz respeito às limitações à contratação, esta se evidencia de forma muito clara e objetiva nos casos que envolvam o direito de consumidor.

            Com efeito, o artigo 5º, inciso XXXII da Constituição de 1988, prescreve que o "[...] Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor [...]", sendo que no artigo 170, inciso V, constitui-se a defesa do consumidor como um dos princípios gerais da ordem econômica.

            É princípio comezinho da hermenêutica que não existem disposições inúteis na Constituição, devendo o interprete haurir de todas elas o seu conteúdo normativo, pois expressam, em última análise, a vontade soberana do povo manifestada no ato de constitucionalização do Estado. Assim, o que quer expressar o princípio constitucional-econômico da defesa do consumidor?

            Basicamente três coisas: 1) o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor no mercado de consumo, 2) como corolário, a manifesta desigualdade entre as partes envolvidas na relação de consumo, havendo, quase sempre, um efetivo exercício do poder econômico por parte do fornecedor e em detrimento do consumidor, e 3) a indispensabilidade de proteção do consumidor como forma de se criar: i) um mercado de consumo racional e eticamente estruturado, ii) a necessidade de se defender, no mercado de consumo, o elemento imprescindível de sua existência, como seja, o consumidor, sob pena de ruir o fundamento estrutural do modo capitalista: a circulação de riquezas, e iii) condicionar a exploração econômica ao ganho lícito, fundado no princípio da boa-fé.

            Acerca deste tema, colhe-se a seguinte lição de José Luiz Quadros de Magalhães:

            O direito do consumidor envolve a interferência do Estado em problemas ligados à qualidade do produto, à relação de consumo, ao preço, aos contratos de fornecimento de produtos e serviços, à publicidade, dentre outras coisas [...] Os direitos individuais do consumidor não se encaixam na teoria dos direitos individuais clássicos, como direitos contra o Estado [...] A necessidade de proteção do consumidor surge da expansão na economia com vultosos empreendimentos industriais, comerciais ou de prestação de serviços, comandada por maciça e atraente publicidade, criando novos hábitos, despertando ou mantendo o interesse da coletividade [...] Essa desigualdade entre consumidor e empresários traz a ocorrência de inúmeras práticas comerciais lesivas, resultantes de um sistema econômico competitivo, que nem sempre respeita os valores éticos, causando danos os mais diversos ao consumidor, conforme o caso, à vida, à saúde, à privacidade [...].

            Em razão destas circunstâncias, o legislador infraconstitucional, obedecendo ao comando disposto no artigo 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, embora intempestivamente, elaborou a Lei nº 8078/90, dito Código de Defesa do Consumidor.

            Na parte normativa que se enquadra ao presente trabalho, o CDC prevê normas e princípios importantíssimos à efetiva proteção do consumidor, como, por exemplo, a) o dever de informação adequada e clara acerca dos bens e serviços que lhe são ofertados (artigo 6º, inciso III), b) a proteção contra publicidade enganosa e práticas comerciais abusivas (artigo 6º, inciso IV), c) a revisibilidade das cláusulas contratuais que imponham obrigações desproporcionais ou que venham a se tornar excessivamente onerosas em decorrência de fatos supervenientes (artigo 6º, inciso V), d) o princípio da vinculação da oferta no contrato (artigo 30), e, entre as mais importantes, a conceituação e o estabelecimento de proibição de cláusulas contratuais abusivas, dentre as quais se destacam: a) cláusulas que excluam, limitem ou transfiram a responsabilidade do fornecedor (artigo 51, incisos I e III), b) imponham a utilização compulsória da arbitragem (artigo 51, inciso VII), c) criem obrigações em detrimento do consumidor consideradas abusivas, desarrazoadas ou que imponham vantagem excessiva ao fornecedor (artigo 51, inciso IV), entre outras.

            O ponto nevrálgico de ordem constitucional acerca do tema alude ao seguinte aspecto: tendo o constituinte tratado de forma dessemelhante o consumidor e o fornecedor, com proveito ao primeiro, não teria ferido o princípio constitucional da igualdade?

            A resposta negativa se impõe. Com efeito, o princípio da igualdade, segundo o qual "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]", demanda a aplicação igualitária da lei a todos os que forem iguais. Mas esta igualdade há de ser de ordem substancial e objetiva, como seja, a igualdade deve ser inferida por elementos objetivos de modo a que a aplicação igualitária da lei a casos objetivamente dessemelhantes não importe em gravame ao princípio da justiça, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.

            Com efeito, o princípio da igualdade, na sua formulação clássica, já demandava a discriminação, pois há de se tratar igualmente ou iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade.

            Substancialmente o consumidor é o elo mais frágil no mercado de consumo, posto que, no mais das vezes, está sujeito aos contratos de adesão, sendo estes aqueles que o consumidor não "[...] possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo". (artigo 54, caput, do CDC), consectário do que a doutrina civil-constitucionalista denomina de contratualismo difuso, ou contratualismo de massa, ou mesmo não tem o conhecimento indispensável para o pleno entendimento do produto ou do serviço que adquire. Além disso, está sujeito ao marketing e à publicidade que vende os produtos como sendo a "oitava maravilha do mundo", ou os benefícios de se adquirir ou se filiar a produto ou serviço desta ou daquela empresa.

            Assim, é evidente que existem diferenças de ordens substanciais e objetivas entre os consumidores e os fornecedores, de modo que o tratamento discriminatório se impõe.

            Os dois exemplos que nós colhemos na legislação pátria são bastante para fundamentar aquilo que dissemos no início do presente item, como seja, de que o direito privado moderno se assenta não mais no princípio da autonomia da vontade puro, mas sim, no princípio da autonomia da vontade regrada, na medida em que o ordenamento jurídico, a começar dos princípios e normas constitucionais, impõe uma série de limitações há direitos que não concepção clássica eram ilimitáveis.

            A propriedade não é mais sacra. O contrato não se fundamente mais na palavra. Ambos desempenham o papel quase que preponderante na vida econômica da sociedade, não podendo ficar livres da influência, ao menos, limitadora de abusos nos seus respectivos exercícios.

            Desta sorte, entendemos que o princípio reitor do direito privado hodiernamente é o que denominamos de princípio da autonomia da vontade regrada.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier de. Os princípios reitores do direito público e do direito privado e o princípio da autonomia da vontade regrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3871. Acesso em: 3 maio 2024.