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O controle das finanças públicas

sentido, conteúdo e alcance do art. 70 da Constituição Federal

O controle das finanças públicas: sentido, conteúdo e alcance do art. 70 da Constituição Federal

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Sumário: 1. Introdução: atividade financeira do Estado e normatização constitucional; 2. Fiscalização; 3. A fiscalização na Constituição de 1988; 4. O Tribunal de Contas e sua missão constitucional; 5. O controle das contas públicas pelos cidadãos; 6. Conclusão; 7. Notas; 8.Bibliografia


1. Introdução: atividade financeira do Estado e normatização constitucional.

A Constituição é a lei regulamentadora da atividade estatal, através de seus órgãos, estabelecendo a distribuição das respectivas competências, atribuições e os princípios que devem nortear sua atuação, de acordo com a concepção de constituição material (1).

Por regulamentar a atividade do Estado, é obrigatória a inclusão da chamada Constituição Orçamentária, que é um dos subsistemas da Constituição Financeira, ao lado das Constituições Tributária e Monetária (2). A Constituição Orçamentária dispõe sobre os princípios e regras que norteiam a arrecadação de receita e realização de despesas, sendo sua positivação resultado de um longo processo histórico que vem desde o final da Idade Média, na Inglaterra.

Na Carta instituída em 1988, são destinadas ao cumprimento de tal mister a Seção II do Capítulo II do título VI (arts. 165 a 169, "Dos Orçamentos") e também os arts. 51, 70 a 75 e 99, disciplinando a atividade orçamentária.

Obviamente, a arrecadação e a despesa exigem um controle não apenas dos próprios agentes estatais, com também da própria sociedade, de uma maneira geral, consistindo esta numa inovação, sob o ponto-de-vista do direito positivo brasileiro, introduzida pelo constituinte de 1987. A necessidade de controle da execução do orçamento público se dá por diversas razões de cunho político e financeiro. Sob o aspecto político, deve haver a fiscalização por parte dos Poderes Judiciário e Legislativo junto ao Poder Executivo, pois apesar de este ser o responsável pela Administração Pública, não pode extrapolar os créditos institucionalmente concedidos ou simplesmente se omitir na execução de seus deveres, sob pena de agredir o princípio da Separação de Poderes e, numa concepção menos tradicional, o princípio da Divisão de Tarefas Estatais, ou seja, as atividades entre distintos órgãos autônomos (3). Já sob o ponto-de-vista das finanças, faz-se necessário para evitar desperdícios e a dilapidação do patrimônio público.

Enfim, sob diversos aspectos, deve haver a fiscalização ou o controle da gerência do patrimônio público. Na Constituição vigente, esta necessidade e sua formalização estão contidos em seu texto a partir do artigo 70, objeto principal deste trabalho, que se propõe a esclarecer, em linhas gerais, como se dá o aparato estatal para tal fim, utilizando-se para tanto de uma perspectiva dogmática, pois trata-se da análise de um texto constitucional, sem prescindir, obviamente, de um enfoque zetético, perquiridor, ao problema (4).

Interpretar é traçar o conteúdo, sentido e alcance de uma norma jurídica, nas palavras de Carlos Maximiliano (5), à luz de uma hermenêutica clássica. Para traçá-lo, no artigo 70, será inicialmente feita a distinção entre fiscalização e controle, explicando-se posteriormente os três sistemas já utilizados universalmente no controle das contas públicas. Para um melhor entendimento do sistema hoje utilizado no Brasil, com a Carta de 1988, será realizado um breve resumo da fiscalização no decorrer de nossas várias constituições, para que somente depois sejam expostos e analisados o atuais mecanismos, com suas peculiaridades e inovações. Na conclusão, será procedida a uma crítica deste sistema, verificando-se acerca de sua real eficácia para a moralização da gestão do patrimônio público brasileiro.


2.Fiscalização

2.1.Fiscalização e controle: distinção entre os termos

A fiscalização financeira é realizada através de um controle, segundo Ricardo Lobo Torres. Mas, como diferenciar fiscalização e controle? São termos quase sinônimos e não apenas no Português, mas como também no Alemão (Kontrulle e Revision) e no Francês (contrôle e verification), por exemplo. Para precisar a distinção, é útil recorrer a termos mais técnicos. O controle se dá desde a fase do exame e aprovação do Orçamento proposto pelo Executivo (utilizando-se de uma prerrogativa constitucional) feito ao Poder Legislativo. Já a fiscalização está mais ligada à fase final, abrangendo a execução do orçamento pelos Poderes e até o trabalho do Legislativo, no exercício de uma de suas funções típicas (6), fiscalizando através das CPI’s e da atividade genérica das Comissões Permanentes.

2.2.Origem histórica

A necessidade de controle dos gastos públicos é uma preocupação desde a antigüidade. Alguns autores (7) alegam que ela remonta à Grécia no período clássico, onde se dá conta da existência de um Tribunal constituído por 10 oficiais a quem prestavam contas os arcontes, embaixadores e outros funcionários públicos.

Já outros autores alegam ser de origem mais próxima, tendo a fiscalização de contas, como tantos outros institutos de Direito Público surgidos na Inglaterra, através da tradição do Comptroller and auditor general, que se expandiu para outros países, como a Bélgica e a Itália, já no Séc. XIX.

No Brasil, tal preocupação existe desde o Séc. XIX, mas a existência de um regime monárquico não permitiu a sua positivação, pois s própria Constituição de 1824 preceituava em seu art. 99 que "a pessoa do Imperador é inviolável e sagrada. Ele não está sujeito a responsabilidade alguma". Apenas com a chegada do regime republicano e graças ao empenho de Rui Barbosa, dentre outros, foi possível a instituição de um Tribunal de Contas, em 1891.

2.3 Os sistemas de fiscalização

Para a efetivação do controle, há vários sistemas de execução orçamentária. São três os principais:

a)Pelo Poder Legislativo, utilizado na Inglaterra, Suécia, Estados Unidos, Noruega; de tipo Inglês, ou Parlamentar;

b) Por um órgão com funções jurisdicionais, como na França, na Itália e no Brasil;

c)Por um órgão político-partidário, como na extinta União Soviética (URSS)

2.3.1 sistema parlamentar

Na Inglaterra, o controle se dá através de um funcionário eleito pela Coroa – o Comptroller general (Lei de 1866, emendada em 1921 e 1939), com a garantia do "during good behavior", o que equivale a uma cláusula de estabilidade, só sendo demitido após o pronunciamento favorável de uma das casas do Parlamento, a Câmara dos Lordes ou dos Comuns.

O Comptroller mantém contato com o Public Accounting Comitee, que é a Comissão de Contas da Câmara dos Comuns, formada por 15 deputados cujo presidente é, tradicionalmente, um membro da oposição, que sempre apresenta após o dia 31 de março, data que marca o fim do exercício financeiro, um relatório sobre a execução orçamentária e os informes necessários à Comissão de Contas. Em alguns pontos da Inglaterra, são utilizados até 500 funcionários para a fiscalização, não subordinados ao Gabinete.

A inspeção de contas não se dá sobre todas as operações, mas é escolhido, eventualmente, um setor da Administração como alvo de uma análise sobre sua regularidade. Essa peculiaridade faz com que a Administração tenha todas as contas em dia. Esse sistema se estendeu aos países escandinavos, como a Suécia, por exemplo; qualquer pessoa pode ter acesso a documentos para executar a fiscalização orçamentária.

Também se estendeu aos Estados Unidos, onde há um Comptroller general, mas nomeado pelo Presidente da República, sujeito à aprovação do Senado e apenas demissível com a autorização das duas casas do Congresso ou impeachment (segundo a lei de Reorganização Legislativa, de 1946). Goza de grande força, podendo impugnar qualquer pagamento, imputando-o à responsabilidade pessoal de qualquer agente pagador, sendo sua decisão de caráter final. Em se tratando de uma Federação, todos os Estados-Membros mantêm auditores, que são eleitos na maioria dos Estados, sendo livres do controle do Governador. Tais auditores controlam todos os pagamentos; em alguns Estados, têm a própria direção da contabilidade, em outros, também deve analisar a regularidade das contas a posteriori.

Este sistema, no entanto, sofre muitas críticas, como a de Aliomar Baleeiro, que salienta ser a General Accounting Office uma contadoria central da União, sendo um erro esta controlar suas próprias contas (8).

2.3.2O sistema judiciário ou o sistema francês.

O chamado sistema judiciário surgiu na França, com a Lei de 16 de setembro de 1807, que instituiu a Court des Comptes, que coordena a fiscalização da contabilidade executiva. A Corte de Contas é um órgão colegiado, independentemente do Executivo e Legislativo. Neste sistema, também há a exigência de um processo judicial de apreciação de contas.

Na França, há a distinção entre os ordenadores e os contadores (ou pagadores das despesas). Os primeiros determinam as despesas, e os segundos, executam os pagamentos, estando ambos sujeitos a controle. Sobre os ordenadores a ação é administrativa e sobre os pagadores é jurisdicional.

A Corte acumula, portanto, funções administrativas e jurisdicionais. Pode julgar as contas e exerce uma jurisdição administrativa, submetida à revisão do Conselho de Estado (equivalente ao STF). Também fiscaliza as instituições privadas, através do controle das subvenções e outros auxílios. Seus membros são vitalícios. Na verdade, são considerados responsáveis pelos gastos públicos os pagadores e não os ordenadores, exercendo um controle regressivo sobre eles. É realizado anualmente um relatório, publicado no jornal oficial.

Tal sistema também é encontrado na Bélgica e na Itália, guardando entre eles, obviamente, algumas distinções. Na Itália, foi adotado um controle muito rígido, que exige um registro a priori das contas, sendo garantido seu poder de veto ao que lhe é apresentado. Julga não apenas os pagadores, mas também os ordenadores das despesas. Já na Bélgica, há o registro a priori das despesas, mas o Tribunal tem um poder apenas relativo de veto, com a possibilidade do Ministério recorrer de sua decisão. É um órgão quase que dependente do Legislativo, pois seus membros não são só eleitos, como também demitidos por este.

Como será visto adiante, no Brasil também há um Tribunal de Contas.

2.3.3. O sistema político-partidário, ou sistema soviético.

Por ter sido um sistema socialista e unipartidário, o controle das contas na antiga União Soviética era realizado perante um órgão do Partido, o Rabkin. Também, desde 1944, foi constituído um Ministério para este fim.


3.A fiscalização na constituição brasileira de 1988.

A Constituição brasileira prevê a fiscalização da execução orçamentária nos arts. 70 a 74, em que há uma ampliação dessa função estatal, obedecendo ao princípio maior de Direito Público – o da legalidade – que afirma que toda a Administração deve se subordinar à lei, uma das conquistas da luta secular pelo controle efetivo da atividade estatal. Também se prende ao princípio do dever de boa administração, expresso no princípio da economicidade (art. 70).

Apesar de estar ligada ao Orçamento, a Seção referente à fiscalização encontra-se no capítulo Do Poder Legislativo, independentemente do fato de que elaboração, aprovação, execução e fiscalização constituem um todo, do ponto-de-vista material.

O art. 70, que inaugura a Seção IX, estabelecendo seus princípios gerais, tais como tipo, formas de controle e os sistemas, preceitua que:

"Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação de subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigação de natureza pecuniária."

Para melhor entender este dispositivo, é de grande importância distinguir formas, tipos e sistemas de controle, utilizando-se da classificação proposta por José Afonso da Silva (9), à luz do direito positivo estatal brasileiro.

3.1.O controle orçamentário quanto à forma.

3.1.1 Segundo a natureza das pessoas controladas.

O controle pode ser realizado em relação aos administrados e sobre os funcionários do serviço de contabilidade, alcançando até o Presidente da República. No caso deste, a fiscalização não se prende apenas aos atos assinados por ele, mas também de seus assessores mais próximos, que lhe são imputados.

3.1.2. Segundo a natureza do fato controlado

É o que Ricardo Lobo Torres denomina "modalidades de fiscalização" (10), que se inteiram e se implicam mutuamente, cobrindo todo tipo de atividade financeira do Estado. Pode ser: contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.

A fiscalização contábil é feita mediante análise de registros contábeis, de balanços, da interpretação dos resultados econômico e financeiro. É feito em uma base documental, atingindo outras espécies de fatos controlados.

A diferenciação entre fiscalização financeira e orçamentária é também tênue. Ambas incidem sobre o orçamento. A questão é que a financeira controla a arrecadação (receita) e os gastos (despesas) e a orçamentária incide sobre a execução do disposto, analisando o quantum de concretização das previsões da Lei Orçamentária anual.

O controle operacional envolve o controle de resultado das operações de crédito e de despesas que não estejam dispostas na Lei Orçamentária.

A fiscalização patrimonial verifica a legitimidade dos acréscimos e das diminuições ocorridas no patrimônio público. Cabe aduzir que o patrimônio público engloba hoje os bens dominiais e os bens públicos de uso do povo, incluindo-se aí o meio-ambiente.

3.1.3. Segundo o momento do seu exercício

De acordo com o momento em que é realizado, o controle pode se dar de 3 formas: a priori, concomitantemente e a posteriori.

O chamado controle prévio de contas, ou seja, o registro prévio das despesas, foi abolido do sistema brasileiro pela Constituição de 1967.

3.1.4. Segundo a natureza dos organismos controladores

Pode ser classificado em: administrativo (exercido pelos administradores da coisa pública, ou o Poder Executivo), jurisdicional (pelos órgãos do Poder Judiciário, sobre seus próprios atos ou sobre as irregularidades cometidas por outros agentes, aplicando sanções) e político (realizado pelo Parlamento e seus prepostos e auxiliares, através da instauração das CPI’s ou pelas Comissões Parlamentares).

3.1.5Objeto da fiscalização

O art. 70 se estende também à "aferição de subvenções e renúncia das receitas" o controle prévio e parlamentar de sua concessão.

Esta parte do art. 70 pode ser entendida a partir da análise conjunta com o art. 165, §6º, que preceitua o princípio da transparência na Administração Pública, um dos pontos mais importantes da atividade financeira estatal.

Cabe esclarecer o que são subvenções. Sua definição está no art. 12, §3º, da lei nº 4.320, de 1964, do qual pode se apreender que são transferências de receita para cobrir despesas de órgãos públicos e privados . Liga-se à chamada instituição-incentivo, que implica na devolução do que está arrecadado, mediante algumas exigências a fim de incrementar a atividade produtiva através desse estímulo fiscal.

Daí pode ser aferida a necessidade do controle sobre os subsídios, que se prendem mais a um caráter econômico, tendo em vista que as subvenções podem ser concedidas inclusive a instituições culturais e educacionais, como o caso dos Blocos de Frevo no Carnaval pernambucano. Os subsídios constituem igualmente uma transferência de recursos para particulares, mais vinculado à obtenção de certos resultados pelo beneficiário que sejam importantes para o bem-estar social.

Quanto à renúncia de receitas, elas compreendem isenções, créditos fiscais, reduções de impostos, que também visem a um incremento da atividade econômica, dentro da moderna concepção de ingerência do Estado no mercado, utilizando-se do orçamento como mecanismo controlador.

Alguns doutrinadores vêem esta referência explícita como redundância por parte do Constituinte. Em primeiro lugar, é preciso salientar a imensa dificuldade de sistematização da matéria orçamentária durante a Constituinte, tendo em vista que era objeto de duas comissões temáticas – Do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças e Da Organização dos Poderes e Sistema de Governo – com as respectivas subcomissões: de Orçamento e Fiscalização Financeira e do Poder Legislativo. Em segundo lugar, a necessidade criada pela errada utilização desses mecanismos na ordem constitucional anterior, servindo unicamente a interesses particulares.

3.2Quanto aos tipos

Em relação aos tipos ou aspectos, o controle pode se dar em relação à:

Legalidade: que implica no necessário assento em lei, na prévia disposição legal, princípio máximo do direito público.

Legitimidade: diferentemente da legalidade, exige que as atividades estejam de acordo com os princípios mais gerais de Direito Público, sempre com vistas ao bem-estar da comunidade na aplicação do dinheiro público, o apreço à moralidade, à isonomia entre os administrados, entre tantos outros.

Economicidade: é o respeito à melhor relação custo-benefício, em que não implique no desperdício dos recursos do Estado.

Alguns autores, como José Afonso da Silva (11), também acrescentam outros tipos ou aspectos, como o controle de finalidade funcional dos agentes e o de resultados, de cumprimento de programa de trabalho e de metas.

3.3.Os sistemas de controle financeiro e orçamentário: interno, externo e sistêmico.

De acordo com a diferenciação orgânica dos sistemas de fiscalização, esta pode ser feita através do Controle Interno, Externo ou Sistêmico.

O controle interno é feito em cada setor da administração, por cada um dos Poderes em face à verba destinada a cada um deles, que deve obedecer a todos os critérios expostos supra, como decorrência da própria autonomia administrativa e financeira garantida pelo art. 99 da Constituição Federal.

A expressão "controle interno" consistiu uma inovação no vocábulo constitucional brasileiro e em detrimento de sua importância, recebe pouca atenção na Carta Magna. Em linhas gerais, é muito parecido com o controle externo no que concerne às finalidades, objetivos e métodos. Deve ser exercido também sobre as operações de crédito, avais e garantias sobre os direitos e responsabilidades não previstos no item anterior.

O controle externo, por sua vez, se dá através do Tribunal de Contas da União e dos Estados, auxiliando a atividade fiscalizadora do Poder Legislativo, que, munido de seus pareceres e análise, podem proceder a medidas naus severas quanto aos infratores, chegando inclusive ao impeachment, na hipótese de má gerência do Patrimônio Público. Toda a estrutura do Tribunal de Contas será analisada no item 4.

Já a visão da fiscalização como um controle sistêmico supõe que os controles interno e externo mantenham estreita relação entre si.

O art. 74, IV, da Constituição Federal preceitua que o controle interno seja um apoio ao controle externo no exercício de sua missão institucional. Na realidade, o controle interno é uma espécie de preparação para o externo, que não pode controlar todos os atos da Administração. Por isso, "os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária" (§4º do art. 74 da Constituição Federal).


4.O Tribunal de Contas e sua missão constitucional.

A atividade do Tribunal de Contas cresceu muito com a Constituição de 1988. Órgão secular, sua nova missão fez com que toda a sua organização e atividades fossem minuciosamente dispostas no texto constitucional, ocasionando mais estudos sobre a sua natureza, sua posição perante os Poderes do Estado, bem como sobre a juridicidade ou não de suas decisões.

4.1.O Tribunal de Contas e a Constituição Federal de 1988.

O Tribunal de Contas é um órgão de relevância constitucional, mas não goza de status constitucional pois apesar da Carta Política estabelecer suas funções e determinar sua competência, não foi criado pela Constituição.

Na Alemanha, defende-se que o Tribunal de Contas seja uma espécie de quarto poder, o que é totalmente descartado na realidade brasileira, em face do art. 2º, cláusula pétrea, que não o inclui entre os Poderes do Estado.

Questão complexa, portanto, é estabelecer e determinar qual a posição do Tribunal de Contas perante os demais Poderes., haja vista que não é órgão do Executivo nem tão pouco do Judiciário, a despeito da Constituição lhe atribuir a mesma competência dos Tribunais, pois não lhe outorga a função jurisdicional formal.

A doutrina se divide quanto à sua posição diante do Legislativo, mas a maioria fica com a posição de que o Tribunal de Contas é um órgão auxiliar deste Poder que não pratica, no entanto, atos de natureza legislativa. O Tribunal de Contas seria de acordo com a visão sistêmica da fiscalização, um órgão auxiliar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, já que todos os poderes estão incumbidos de realizar a atividade fiscalizadora. Além disso, é órgão auxiliar da própria sociedade, uma vez que a Constituição Federal garante a participação popular no controle da gestão da coisa pública.

4.2.A natureza de suas decisões

O Tribunal de Contas não exerce a função legislativa formal, pois seus atos carecem de eficácia genérica, própria da lei, e não vinculam os demais Poderes às suas decisões.

Do ponto-de-vista da função jurisdicional material, o Tribunal de Contas exerce algumas funções típicas, pois uma das suas atribuições é o julgamento de contas dos responsáveis com imparcialidade, independência, ampla defesa, dentre outras garantias. Todavia, formalmente, o Tribunal de Contas não possui função jurisdicional, já que suas decisões não produzem coisa julgada e mesmo o julgamento das contas dos administradores está sujeito a recursos.

Enfim, seus atos são de natureza formalmente administrativa e, à exceção do julgamento de contas, também materialmente administrativa.

4.3.As novas competências do Tribunal de Contas.

De acordo com a Carta de 1988, o Tribunal tem a atribuição de julgar, sem ressalva, as contas de todo o universo de órgãos da Administração Pública, tanto direta quanto indireta, incluindo-se entre estas as empresas de cujo capital a União participe, mesmo em caráter minoritário ou igualitário, ao contrário do regime anterior que, de acordo com a legislação ordinária revogada (Leis nº 6.223/75 e 6.525/78) restringia às empresas nas quais a União fosse detentora da maioria de ações com direito a voto.

O Tribunal de Contas passa a ser um órgão público de controle externo, com poder jurisdicional em todo o território nacional, nas matérias de sua atribuição. Também voltou a ter resguardado seu direito de realizar inspeções, auditorias e levantamentos explícitos sobre as contas dos diversos órgãos. Sua ação tem caráter não apenas controlador, mas também educativo e moralizador, contribuindo para a correta gestão da coisa pública.

O controle foi estendido às contas nacionais das empresas supranacionais – como Itaipu, por exemplo – com 50% do capital brasileiro, que não estavam submetidas a esse tipo de fiscalização. Foi mantida a atribuição de parecer prévio sobre a prestação anual de contas do Presidente, que devem ser julgadas pelo Congresso Nacional, e da elaboração de um relatório sobre a gestão econômica, orçamentária, financeira e patrimonial da União.

O controle de pessoal também foi ampliado, estendendo-se o registro de concessões de aposentadorias e pensões na Administração indireta (nas autarquias) e na admissão de pessoal das Administrações direta e indireta, incluindo-se fundações.

O Tribunal de Contas deve controlar os recursos transferidos pela União a Estados, Municípios e Distrito Federal, ou a qualquer entidade ou órgão a eles vinculado, que acontece em consonância com o princípio da descentralização. Essa fiscalização se mostra um tanto insuficiente. Daí ter sido instituído um duplo controle: sobre quem repassa e sobre quem recebe o valor.

Essas são algumas atribuições conferidas em face das inúmeras outras dispostas no art. 71 da CF-88.

4.4.A ação conjugada entre o Legislativo e o Tribunal de Contas no controle externo.

Nos incisos IV, VII e XI e §4º do art. 71 da Constituição estão dispostas as atividades que exigem e exemplificam a ação conjunta do Tribunal de Contas e do Congresso.

Já no art. 72, §§1º e 2º, é estabelecido o estrito relacionamento existente com um dos órgãos de maior relevância do Congresso Nacional – a Comissão Mista Permanente de Senadores e Deputados.

Conforme já foi visto anteriormente, cabe ao Tribunal de Contas a análise das contas do Presidente e de toda a Administração; e se forem verificadas irregularidades, serão estas também encaminhadas ao Congresso Nacional, para que sejam tomadas as medidas cabíveis.

Por sua vez, a possibilidade de o Tribunal de Contas aplicar sanções não é pequena. É facultada a aplicação de multas proporcionais aos prejuízos causados ao Erário. Vale salientar que as decisões desta Corte têm eficácia de título executivo.

Nas três esferas de Poder – federal, estadual e municipal – os representantes do povo, através do Congresso Nacional, Assembléias Legislativas estaduais e Câmaras Legislativas municipais e do Distrito Federal, respectivamente, são os encarregados de exercer o controle externo. Na realidade, o Tribunal de Contas exerce uma prévia apreciação técnico-administrativa, cabendo o controle de natureza política ao Poder Legislativo.

4.5.Organização e composição.

Dada a sua importância, a Constituição Federal, concedendo-lhe um perfil de independência, traça minuciosamente a sua organização, a forma de escolha e as prerrogativas de seus membros.

Sua organização obedece às normas aplicáveis aos Tribunais do Poder Judiciário, justificando, erroneamente, a opinião de alguns autores que alegam ser o Tribunal de Contas pertencente ao Judiciário.

Os servidores devem ser concursados, apresentando um alto grau de profissionalismo e preparo intelectual, tendo em vista suas atribuições. Formam um quadro próprio de funcionários, não subordinados a outros órgãos. Essa característica de preparo intelectual também deve ser seguida como critério de escolha de seus Ministros, que são 9, e que obedecem ao disposto no art. 73 da Constituição de 1988.

Ainda de acordo com este artigo, um terço dos Ministros deve ser escolhido pelo Presidente da República, com posterior apreciação do Senado Federal, dentre uma lista tríplice indicada pelo Tribunal, para que dela o Presidente, seguindo sua discricionariedade, proceda à escolha. Os dois terços restantes são escolhidos após a mesma forma de indicação, pelo Congresso Nacional.

Esses Ministros possuem as mesmas garantias e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, como a vitaliciedade no cargo, por exemplo. Já os membros dos Tribunais de Contas estaduais, do Distrito Federal e dos municípios têm o título de Conselheiros. O Tribunal de Contas da União fica localizado no Distrito Federal, onde está desde 1961, após a transferência da Capital Federal do Rio de Janeiro para Brasília.

4.6.Os tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal, Tribunais e Conselhos de Contas Municipais.

Pelo fato do Brasil constituir uma Federação, há uma simetrização dos demais Tribunais com o modelo federal, no entendimento do STF (RDA, 126: 341; RTJ, 46: 442; 50: 245; 52: 520). Mas estes Tribunais de Contas devem ter, no máximo, 7 Conselheiros. O critério de escolha à maneira do Tribunal de Contas da União seria inviável, sendo estabelecidos, em cada Estado, critérios próprios em relação ao quantum para a escolha.

É entendido pela doutrina (12) que a Constituição federal não estipula sobre a criação de novos Conselhos de Contas municipais, o que pode ser aferida em uma interpretação conjunta com o art. 31 §4º, que veda "a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais", mas apenas subsistem os Conselhos já existentes à data de sua promulgação.


5.O controle das contas públicas pelos cidadãos.

De acordo com o art. 74, §2º, da Constituição Federal, "qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União". Este artigo coaduna-se com o também disposto no art. 31, §3º, que garante a disposição das Contas dos Municípios por 60 dias a qualquer pessoa, e com o art. 5º, LXXIII, que garante às associações e outros órgãos a defesa dos direitos públicos coletivos e difusos, inserindo-se aí o papel do Ministério Público.

O Tribunal de Contas passa a ser um órgão fiscalizador auxiliar não apenas dos Poderes, mas da comunidade em geral, no exercício dos seus direitos (13).


6.Conclusão

A atividade fiscalizadora é de extrema importância por diversos aspectos, desde o fato de que apenas com a correta gerência do patrimônio público o Estado pode fazer frente às inúmeras expectativas e obrigações facultadas às atividades do chamado Estado de Bem-Estar Social, inclusive no que tange à questão da confiança que a sociedade em geral deve ter com relação à atividade estatal e dos governantes, de maneira geral.

A Constituição de 1988 inova ao conceder à coletividade não apenas o direito como também o dever de controle e fiscalização das contas públicas. Tal prerrogativa, no entanto, decorridos já 10 anos de sua promulgação, ainda não foi corretamente utilizada, apesar da crescente indignação diante da corrupção, do nepotismo e outras mazelas que contaminam a gestão da coisa pública. Mas esta indignação já é um sinal de avanço, haja vista que há pouco a capacidade de se manifestar acerca dos interesses públicos foi totalmente tolhida na base da noção de cidadania, em virtude dos tempos de difícil recordação, na vigência da ditadura militar.

Muito embora a preocupação do Constituinte em inserir na Carta de 1988 dispositivos que facilitem a participação do povo na vida estatal, o fato é que a falta de conscientização da população dos seus direitos, arma nas mãos de políticos nada escrupulosos para a manutenção de seus privilégios, só faz aumentar a total falta de participação popular na vida pública, servindo apenas o texto constitucional como álibi do Estado. Isto é, o Estado colocou nos textos legais os mecanismos de democracia e cidadania, buscando, com esse álibi, livrar-se da responsabilidade da falta de uso desses mecanismos pela sociedade (14).

Por outro lado, as funções típicas do Estado social não se realizam no Brasil. Basta ver que cada vez mais a sociedade se sente mais carente em relação às necessidades básicas de subsistência, bem como de direitos fundamentais, cada vez menos observados na realidade social, em virtude da inércia do Estado em lidar com tais questões.

No que tange à fiscalização, percebe-se que a inércia não se diferencia: nepotismo na nomeação de Conselheiros e Ministros dos Tribunais de Contas, falta de preparo intelectual e corrupção cada vez mais fazem com que a atuação do Estado, tal como estipulado na Constituição de 1988, fique cada vez mais distante da realidade, assertiva consubstanciada na sucessão de escândalos político-jurídicos de improbidade administrativa que assolam o País. Infelizmente, o "mundo da vida" vai se acostumando a viver corriqueiramente sob o manto da ilegalidade e da total falta de apego à principiologia que norteia o direito brasileiro, ao menos no que tange ao seu aspecto formal.


7.NOTAS

01. BONAVIDES, Paulo: Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 147-170.

02. TORRES, Ricardo Lobo: Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

03. CLÈVE, Clèmerson Merlin: Atividade Legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: RT, 1993, p. 26. E na hodierna Teoria do Estado, principalmente a alemã, fala-se em "distribuição de funções organicamente adequada", vendo a Separação de Poderes mais sob o aspecto da especialização das funções estatais do que propriamente pela sua limitação, cf. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 152 s.

04. Sobre dogmática e zetética no direito, cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio: Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1997, pp. 39-52.

05. MAXIMILIANO, Carlos: Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

06. MORAES, Alexandre de: Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 346.

07.FERREIRA, Pinto: Comentários à Constituição Brasileira. v. III. São Paulo: Saraiva, 1992.

08. BALLEEIRO, Aliomar: Uma Introdução à Ciência das Finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 766.

09. SILVA, José Afonso da: Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 724.

10. TORRES, Ricardo Lobo: Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 170.

11. SILVA, José Afonso da: Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1997.

12. MORAES, Alexandre de: Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999.

13. TORRES, Ricardo Lobo: "Os Direitos Fundamentais e o Tribunal de Contas". Revista do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro. n. 23, 1992, pp. 54-63.

14. Sobre a legislação como álibi, cf, NEVES, Marcelo: A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, pp. 37-42.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Flávia Danielle Santiago. O controle das finanças públicas: sentido, conteúdo e alcance do art. 70 da Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/337. Acesso em: 29 abr. 2024.