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Globalização, flexibilização e desregulamentação

Modelos emergentes para a inspeção do trabalho

Globalização, flexibilização e desregulamentação. Modelos emergentes para a inspeção do trabalho

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Sumário: apresentação, introdução, 2. histórico, 2.1 - inspeção do trabalho: retrospectiva crítica, origens e evolução da crise, a crise na globalização, 2.2 - desdobramentos da crise: dimensões locais e globais, 3. direitos sociais, controle social e mudança social , direitos sociais, controle social e mudança social, 4. modernização: a inspeção do trabalho na globalização, auditoria, certificação e acreditação, a cultura fiscal e a cultura da auditoria, abordagens no setor informal, 5. modelos emergentes para a inspeção do trabalho, 6. conclusões: uma proposta para a nr-2, notas, bibliografia.


APRESENTAÇÃO

Neste Trabalho desenvolve-se o tema proposto pelo SINAIT "A flexibilização das normas trabalhistas e a atuação dos fiscais do trabalho", sob o título "Globalização, Flexibilização e desregulamentação da legislação trabalhista: modelos emergentes para a inspeção do trabalho".

Na primeira parte, estuda-se a crise política da inspeção do trabalho e as alternativas para recuperar o seu espaço numa perspectiva de modernização. Faz-se uma retrospectiva histórica crítica da inspeção do trabalho e o desdobramento dessa crise na ordem globalizada, principalmente no Brasil. Comenta-se brevemente conceitos sociais, como crise organizacional, movimentos sociais e controle social.

Em seguida, analisa-se a dinâmica dos espaços políticos observada nas arena da competição e meio ambiente como argumentos para a repolitização da arena do trabalho.

Projetam-se modelos para a inspeção do trabalho consistente com a participação e controle social e mediada por técnicas de Auditoria e Certificação delegadas pelo Estado. .

No final, sugerem-se diretrizes para um novo formato da Norma Regulamentadora No. 2 da Portaria No. 3.214/78, propondo-se uma discussão sobre a matéria.


RESUMO

Este Trabalho aborda o esvaziamento da arena política do trabalho sob o fenômeno da globalização e analisa os problemas e alternativas para a inspeção do trabalho em face da flexibilização e da desregulamentação da legislação trabalhista.

Mencionam-se referências para o estudo das crises organizacionais e das disfunções da sociedade que levam a movimentos sociais e ao controle social. Argumenta-se sobre a recuperação da verdadeira dimensão política da arena do trabalho e da inspeção do trabalho tendo como referência a dinâmica observada nos espaços da competição e do meio ambiente, através do potencial político de Auditoria e Certificação estatal sob controle social. No setor informal identifica-se uma nova arena em construção e sinalizam-se novas perspectivas para a inspeção do trabalho.

São abordadas algumas experiências observadas pela Organização Internacional do Trabalho como base para propor a implementação no Brasil de um projeto para Auditoria, Certificação e Acreditação Públicas mediada pela inspeção do trabalho, utilizando-se a Norma Regulamentadora No. 2, da Portaria No. 3.214/78, sob novo formato.

As referências bibliográficas na Internet aparecem no rodapé de páginas, com o endereço original do site, tendo sido feita uma tradução livre dos originais em inglês.


ABSTRACT

GUEIROS, Samuel; LOPES, Airton da Silva. Globalization and Flexibilization of the labour legislation: merging of labour inspection models - monographs: dissertation. São Luiz, MA: ENAFIT, 2000.

This study approaches the shrinking of the work political arena under the globalization as well as the problems arising to the labour inspection facing the flexibilization of the labour legislation.

It argues with social concepts and a way to restore the very political dimension of the work arena and of the labour inspection using the same dynamic applied in both the political global arena of the competition and of the environment. This dynamic is based on Audit techniques towards a State Certification of Work Relations and Health at Work Quality by the labour inspection supported by social control.

The Study comments similar experiences in some national inspection systems, and suggests the legal framework already existed to tackle with this project.


1. INTRODUÇÃO

Este Trabalho trata da crise e das alternativas para a inspeção do trabalho sob a flexibilização e desregulamentação da legislação trabalhista.

A crise evolui no mesmo ritmo da progressiva desconstrução da arena política do trabalho, em vista da estratégia do capital para a anulação dos conflitos trabalhistas e para a elaboração dos contratos regidos apenas pelos interesses do mercado (RIFKIN, J.,1995; PASTORE, J., 1994). O cenário é de um enfraquecimento e total submissão do Trabalho e do Estado, que se desqualificam como atores de um espaço político. Mantida a diretriz da desregulamentação e flexibilização, sinaliza-se para uma arena sem conflitos e o tripartismo caminha para a obsolescência. Inexistindo o conflito, e a intervenção estatal, operando de forma meramente simbólica, esgarçam-se as interfaces entre a inspeção do trabalho e a sociedade, correndo-se o risco de um processo autofágico (POLIDO, F.(1)); MANNRICH, N., 1991; ROSSO, S., 1999).

Trata-se de uma crise essencialmente organizacional no âmbito do serviço público (FORACHI. M. e MARTINS, J. 1977)(2), refletindo as disfunções mais amplas na sociedade sob o contexto da globalização. A inspeção do trabalho percebe a sua responsabilidade e teme este processo de despotencialização de direitos sociais, reproduzindo este esvaziamento no interior do serviço público em seqüências descontinuadas e alternantes de insatisfação e acomodação. Na insatisfação, há uma luta por conquistas funcionais, como o status de carreira típica do Estado e recuperações salariais; na acomodação, elaboram-se mecanismos diversionistas; ambos os comportamentos assemelham-se a "mecanismos de fuga" sob um stress de perda de identidade. O problema é generalizado e internacional. Os contornos dessa crise tem sido abordados inclusive pela própria Organização Internacional do Trabalho - OIT, que enumera alguns tensores identificados como ameaças à inspeção do trabalho sob a globalização(3):

- desregulamentação; revisão e redução da legislação em segurança;

- novas tecnologias desconhecidas pela inspeção;

- pressão social para a inspeção do trabalho a qual é percebida em algumas situações como uma instância jurídica;

- propostas para calcular o custo de normas em segurança e saúde, antes de sua implementação.

A crise propicia uma busca da identidade da inspeção do trabalho lançando-se mão de alternativas operacionais e funcionais que parecem deslocadas das matrizes epistemológicas que originaram a intervenção estatal e a inspeção do trabalho. (ROSSO, S., 1999; MANNRICH, N.,1991). Essas alternativas consistem na instrumentalização dissimulada da inspeção do trabalho, seja para coonestar negociações para perda de direitos(4), seja para a implementação de simulacros de consultoria em segurança e saúde para o setor privado(5). Essa nova dinâmica não reflete a verdadeira natureza do papel social do Estado e contribui também para o processo de descaracterização e decadência da inspeção do trabalho.

Alternativamente, estuda-se como as possibilidades de reorganização e recuperação desse sistema, e consequentemente da própria inspeção do trabalho, dependem da reenergização desse espaço sob plena visibilidade e controle social. Esta diretriz de controle social da inspeção do trabalho começa a emergir de forma ainda incipiente mas não parece ter encontrado ainda um modus operandi factível, visto que depende organicamente da existência de uma arena política sob a perspectiva concreta de conflitos reconhecidos pelos seus atores, atribuição de poderes e a possibilidade do exercício de barganha. (SOUTHALL, R.,1988).

As crises organizacionais no sistema público, como a crise da inspeção de trabalho, constituem reflexos de disfunções estruturais na ordem social (FORACHI. M. e MARTINS, J., 1990). Há uma historicidade inerente a esse processo entendendo-se que a perspectiva atual é suscetível de uma análise crítica, e que mesmo assim, os modelos emergentes para a inspeção do trabalho nesse novo cenário viabilizam-se pela modernização e não pelo retrocesso.


2. HISTÓRICO

2.1 - INSPEÇÃO DO TRABALHO: RETROSPECTIVA CRÍTICA

ORIGENS E EVOLUÇÃO DA CRISE

A inspeção do trabalho nasce da desigualdade e do conflito nas relações do trabalho. Sua dinâmica é uma crise permanente de legitimação no espaço das lutas sociais pela igualdade, caracterizada por uma complexa estrutura na qual se inserem os interesses conflitivos da classe hegemônica e os da burocracia estatal (ROSSO, S., 1999; GADOTTI, M., 1991).

Por conseguinte, a crise da inspeção do trabalho é a crise do próprio trabalho, é a crise do Estado e da sociedade.

Podemos resumir a intervenção materializada na inspeção do trabalho, sob um ciclo histórico:

Exploração, Precarização e Intervenção Social

Este quadro baseia-se em George Rosen. Da Polícia Médica à Medicina Social. Rio de Janeiro: Ed Graal 1980.

O ciclo acima é uma simplificação de um processo complexo, estudado e registrado sob datas e nomes já mencionadas de forma recorrente em diversos trabalhos sobre o assunto (ROSSO, S., 1999; MIRANDA, C.(6)). Para não se perder o foco, destacam-se apenas alguns tópicos desse processo.

No ciclo histórico da exploração, a precarização dos indicadores sociais constitui a forma mais persuasiva de pressão para que o capital admita a existência das desordens sociais, porém, não por uma manifestação de sensibilidade social, mas pela percepção de uma ameaça concreta à dinâmica da exploração. Neste ponto, o capital admite uma arena de negociação onde tentará atenuar suas perdas, geralmente por uma combinação de tecnologia e desemprego (REDCLIFT, M. 1987). Trata-se de um processo que é essencialmente ideológico, visto que, argumentando-se que as perdas são inevitáveis, posterga-se a igualdade para um porvir justo e igualitário, concertado sob o compromisso para um novo ciclo de exploração denominado de desenvolvimento ao qual se articulam outras instâncias ideológicas, como a Educação (RODRIGUES, N., 1987).

De qualquer forma, para o capital, a arena política do trabalho ideal seria aquela sem conflitos, regido pela lex mercatoria e não pela res publica.

Na história da legislação do trabalho, o espírito de intervenção e controle social aparece de forma dispersiva, primeiramente por iniciativas de pessoas ou grupos da sociedade preocupados com a deterioração dos indicadores sociais que mostravam uma clara conexão com a exploração do trabalho e do meio ambiente. Essas pessoas e instituições sofreram enfrentamentos e discriminações até que a sua voz fosse ouvida e alguma intervenção fosse implementada (ROSEN, G., 1980; ROSSO, S., 1997). Serão destacadas algumas experiências e Trabalhos recentes relacionados a esse ciclo histórico que parecem adequados à presente argumentação.

O primeiro registro histórico da formalização de uma arena política do trabalho sob intervenção estatal é de 1802, com a Lei de Peel, reduzindo a jornada de trabalho de menores para 12 horas, após um amplo processo de negociação em que a pressão social foi determinante. No Brasil, o fenômeno também se reproduziu, mas o dispositivo legal ficou só no papel (MANNRICH, N., 1991). Com a criação da OIT em 1919 institucionaliza-se a intervenção estatal a nível global, dentro do mesmo espírito do Tratado de Versalhes e da Comunidade de Estados soberanos, organizados para regulação dos conflitos e prestação de garantias para a Igualdade (MANUS, P., 1995).

E no Brasil, os marcos históricos serão analisados na perspectiva da manipulação política, pelo Estado, da Convenção No. 81 da OIT, instituto que estabelece as bases da intervenção estatal mediada pela inspeção do trabalho, como se verá a seguir.

Considere-se como exemplo deste ciclo histórico da exploração e intervenção no país, o cenário que desembocou na Consolidação das Leis do Trabalho-CLT e posteriormente nas NRs-Normas Regulamentadoras em Segurança e Medicina do Trabalho.

Na era getulista, um Estado forte e com respaldo popular intervém na questão social diante da precarização de indicadores conseqüente ao conflito entre as formas de exploração da burguesia agrária e da emergente burguesia urbana (ROSSO, S., 1997). Em última análise, para fazer ver às elites que era preciso perder alguns anéis para não perder os dedos e assim nasce a CLT, materializada em concessões ao trabalho e à sociedade (MANNRICH, N., 1987). O Ministério do Trabalho é criado em 1930 e a Convenção No. 81 é ratificada em 1957 (ROSSO, S. 1997).

Nas décadas de 60/70, o capital reage à evolução das conquistas sociais, instrumentalizando o Estado, para, agora com respaldo militar, estabelecer mecanismos de reversão dessas conquistas que no dizer de ROSSO (1999), "viraram ficção" e em 1971 o Brasil denuncia a Convenção No. 81. A estratégia de desenvolvimento nacional faz uma opção pelo capital intensivo, em detrimento do trabalho e o próprio Estado passa a subsidiar o capital com recursos públicos. (ROSSO, S.,1997). Com um formato recorrente, o lucro é privatizado e os prejuízos socializados.

Não demora e emerge a deterioração inevitável de indicadores sociais. O exemplo mais representativo consistiu nos números sobre acidentes de trabalho, cuja gravidade experimentou reverberação internacional (ROSSO, S., 1999). E mais uma vez, o capital é obrigado a algumas concessões e desse contexto nasce a legislação sobre segurança e saúde do trabalhador instituindo-se as NRs, período que coincidiu com a abertura política e o fim do regime militar.

A posterior redemocratização do país assinala uma recuperação de direitos sociais que se cristalizam na Constituição de 1988, principalmente por dispositivos legais nacionais e internacionais destinados à proteção do trabalhador, da mulher e dos menores. Estabelece-se, também, a base constitucional para tornar a inspeção do trabalho carreira típica do Estado e o Brasil ratifica a Convenção No. 81 em 1987.

Com a globalização, o capital volta a implementar mecanismos reversores das conquistas trabalhistas, obriga o Estado à retirada do seu papel interventor e começam a aparecer, mais uma vez, indicadores sociais em processo de precarização. Aumenta o fenômeno da exclusão social, de movimentos de sem-terra, a pobreza alastra-se, o desemprego aumenta, ressurgem velhas doenças que afetam a saúde pública e intensifica-se o trabalho infantil (JONES e MOON, 1987; RIGOTTO, R(7)).

Na era da globalização, a Convenção No. 81 não é denunciada, mas empreende-se a sua descaracterização digital, despotencializando-se direitos sociais sucessivamente deletados da legislação trabalhista.

Reproduz-se o ciclo da exploração, com a diferença de que a superposição do poder capitalista global não apenas desequaliza a arena política, mas a anula quase que totalmente. A velocidade, articulação e mobilidade da globalização paralelamente à desregulação e flexibilização tem ocasionado uma autentica paralisia institucional e social, bloqueando as possibilidades de reação ou o restabelecimento do verdadeiro espaço negocial trabalhista. A radicalização de tal flexibilização e desregulação tem inclusive levado a formas completamente anárquicas e antiéticas de exploração econômica, permitindo a transnacionalização de empreendimentos que operam no crime organizado e no contrabando além de excessiva pressão mercadológica sobre as crianças para o consumo do supérfluo (LUKE, T.(8); RUDZKI, R.(9)). Na ordem global, não é só o trabalho infantil na pobreza, que complica a agenda social, mas, também, o consumo infantil entre os mais abastados.

Entretanto, a exemplo de outras eras do ciclo da exploração, vive-se um momento de transição, quando a deterioração dos indicadores sociais, que constituem o motor para estabelecer uma arena de negociação, está em franco paroxismo. Os mecanismos de reversão empregados anteriormente parecem não ter mais eficácia, mercê da falência dos Estados nacionais. Mesmo assim, começam a se articular movimentos sociais de resistência, também em escala global(10) com o objetivo de controlar as atividades das corporações transnacionais no sentido de democratizar a atividade econômica global e repensar a função social da empresa (BREVIDELLI, S.(11)).

A própria dialética da globalização tem suscitado mecanismos reversores de sua expansão, porém não mais para formalizar arenas, como a do trabalho, mas criando outros espaços políticos, como as da própria competição, do meio ambiente e a do chamado Terceiro Setor ou Setor Informal, as quais evidenciam características de suscetibilidade ao controle social.

A análise precedente evidencia, portanto, que a inspeção do trabalho legitima-se e os seus atores expressam identidade unicamente sob a dinâmica dos conflitos suscitados pelo ciclo da exploração, levando-se à negociação, barganha e a instauração de normas, até que um novo ciclo de exploração e precarização sinalize para a necessidade de um novo estágio de negociação, compromisso e normatização.

Ressalte-se ainda, que não é função da inspeção do trabalho criar conflitos, mas a sua existência depende deles, no sentido de antecipa-los, preveni-los e, sobretudo, tentar resolve-los (MANNRICH, N., 1987).

A CRISE NA GLOBALIZAÇÃO

A progressiva desregulamentação e flexibilização das normas trabalhistas, com o esvaziamento do espaço das lutas do trabalho, tem propiciado, por parte dos diversos atores envolvidos na inspeção ao empreendimento de diversas reações. Constituem manobras diversionistas que contribuem ainda mais para despotencializar os direitos sociais.

Essa busca de identidade, do lado das relações do trabalho, assinalam inclusive movimentos de apropriação de um espaço político já ocupado por instituições públicas e sociais, geralmente em nível local, também imersas em uma crise de identidade sem precedentes diante da magnitude da exclusão social, como é o caso das ações no trabalho infantil; e, do lado da segurança e saúde do trabalhador, registram a elaboração de projetos para transformar a inspeção do trabalho em uma consultoria de sistemas de gestão para o setor privado, sem qualquer custo para as empresas. Se de um lado esvazia-se o setor de relações do trabalho, visto que o capital passou a impor as formas de contratos e direitos, na área de segurança e saúde hipertrofiam-se e multiplicam-se as normas regulamentadoras, constituindo uma notável contradição, típica dos períodos de transição, no qual se debate a inspeção do trabalho na busca de sua sobrevivência e legitimidade.

Tome-se o exemplo do trabalho infantil para uma reflexão sobre a crise do Estado e da inspeção do trabalho. O trabalho infantil tem sido historicamente um dos indicadores mais explícitos de precarização social, um prenúncio da intervenção no ciclo da exploração. Portanto, o trabalho infantil não se constitui um problema em si, mas um sintoma de agravamento dos problemas estruturais na sociedade, mediados pela exploração.

Entretanto, a preocupação social que se organiza em torno do problema, que se complica mais recentemente com as reações às pressões do mercado para o consumo infantil, sem o ataque das suas verdadeiras causas, manifesta uma forma de identificação e transferência da angústia coletiva da sociedade para esses problemas(12). Trata-se de uma reação à repressão da mesma ideologia construída para a exploração e exclusão social, não apenas das crianças, mas da maioria da sociedade. O trabalho infantil insere-se no inconsciente coletivo como um mártir da anomia e da alienação total, e consequentemente introduzem-se rituais e liturgias empreendidas pelos setores com responsabilidade social, inclusive a inspeção do trabalho, destinadas à expiação de uma "culpa coletiva inconsciente". Formalizam-se então projetos, cartilhas e sermões, e não é por outra razão que o próprio aparato estatal e setores do capital passam a emprestar solidariedade e até financiamento a esses empreendimentos, sem que sejam atacados os problemas estruturais alavancados pela mercantilização e globalização. Essas ações, de institucionalização insensível da questão do trabalho infantil e de programas inconseqüentes para erradicá-lo, porque meramente tópicos, acabam criando um clima de competição artificial entre instituições, também em crise de identidade social, mas principalmente, uma espetaculização e banalizaçao macabra do trabalho infantil a ponto de se produzir uma diretriz para a inspeção do trabalho sob o título de "piores formas de trabalho infantil"(13). Por outro lado, o termo erradicação, recorrente no jargão auto-suficiente do poder, lembra as campanhas de vacinação e erradicação de doenças como a malária, por exemplo, na área da saúde pública, que aliás, nunca se erradicou porque calcada em um modelo epidemiológico simplista, que ignora a complexa causalidade social das doenças. E introduz-se um simulacro terapêutico, uma espécie de novo DDT social, o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), como se o mesmo, borrifando os lares da pobreza com um subsídio miserável, erradicaria o mosquito transmissor do trabalho infantil(14). Outras manobras diversionistas consistem na adoção de reformas cosméticas (como a mudança do próprio nome da instituição, para Trabalho e Emprego e a dos fiscais, para Auditores) sem que tenha havido mudanças estruturais ou funcionais significativas. Multiplicam-se seminários e treinamentos, que com algumas exceções, repetem obviedades ou sugerem novas práticas sem uma conexão lógica com as origens do pensamento político que deram origem à inspeção do trabalho (MANRICH, N., 1987; ROSSO, S., 1999).

O resultado é uma sensação generalizada de descaracterização e a inspeção do trabalho vai se parecendo muito mais como uma consultoria do tipo SEBRAE para o setor privado do que realmente uma atividade de garantia e proteção do Estado à sociedade.

A busca de legitimidade e identidade lança mão ainda de artifícios que acabam apenas denunciando a progressiva perda da sustentação do sistema de inspeção do trabalho: mesas de entendimento - que expõem a ineficácia da legislação num contexto de desmoralização do Estado; interferências políticas sobre a inspeção - para atenuar o seu poder de intervenção; ênfase sobre o trabalho informal e do menor - em vista do vazio operacional; sistemas de gestão de riscos - confundindo-se normas regulamentadoras com manuais de gerenciamento, etc.

Um dos maiores exemplos da descaracterização dos direitos sociais e da inspeção do trabalho é a recepção cada vez maior, por parte do Judiciário, dos conflitos oriundos do mundo do trabalho, assunto que já tem recebido várias abordagens; (PASTORE, J., 1994). Para SUZUKI(15), "O Estado, que criou o Direito do Trabalho como forma de manter a harmonia social, agora em nome desse mesmo valor, o está eliminando; em nome da manutenção do emprego, permitem-se flagrantes injustiças; em nome de salvaguardas à população, retira-se um de seus instrumentos de proteção".

2.2 – DESDOBRAMENTOS DA CRISE: DIMENSÕES LOCAIS E GLOBAIS

Diante desse contexto, a globalização e progressiva demanda pelas empresas de certificados tipo ISO(16) parecem contribuir também para o esvaziamento não só dos sistemas de inspeção do trabalho nacionais, mas da própria OIT, fato inevitável, tendo em vista o esvaziamento dos Estados Nacionais conseqüente à globalização. Assim como ONGs multiplicam-se para ocupar o vácuo produzido pela falência dos Estados Nacionais, o ISO ocupa espaço na medida do esvaziamento das instituições públicas reguladoras das normas internacionais do trabalho, como a OIT. A comunidade transnacional vai criando seus próprios mecanismos de controle e normatização, sob a ótica da competição e qualidade, lançando à obsolescência, o trabalho, o emprego, normas trabalhistas, leis, convenções, além de produtos e serviços, instituições e mecanismos criados sob os valores da "comunidade das nações". Os tempos modernos tayloristas (exploração pelo stress de tempos e movimentos) cedem lugar a pós modernismo toyotista japonês (exploração pelo stress total) ,(17); (RIFKIN, J., 1995). O Consenso de Washington substitui o Tratado de Versalhes.

Porisso, as discussões e foruns sobre a flexibilização e desregulamentação(18) acabam sempre em propostas para "que se garanta esse ou aquele direito", numa referência velada ao Estado, gerando um impasse: se os apelos de resgate dos direitos perdidos são feitos ao ente que deveria garanti-los, como instá-lo às suas obrigações se o mesmo retira-se de cena? Por conseguinte, as discussões e foruns sobre o assunto desembocam sempre num grande vazio de carta de intenções, constatando-se uma falta de sustentação jurídica ou institucional para a maioria das propostas.

A percepção desse impasse institucional que generaliza-se nas instituições públicas torna-se explícita nas instâncias da própria ONU, como se observa pelo conteúdo do Relatório do Milênio no qual enfatiza-se que não há saída para a crise da globalização se não houver uma recuperação da identidade do Estado(19)


3. DIREITOS SOCIAIS, CONTROLE SOCIAL E MUDANÇA SOCIAL

A abordagem da desregulamentação e flexibilização da legislação do trabalho em um contexto de possibilidades para a recuperação da inspeção do trabalho sob controle social remete-nos às questões ligadas aos direitos sociais e mais recentemente aos mecanismos emergentes de controle social e mudança social que se difundem nas sociedades industriais em reação à desordem global. Aborda-se brevemente como esses conceitos tem sido estudados e sua conexão com esses movimentos. Em seguida, faz-se uma abordagem sobre a Auditoria, não apenas como uma técnica empregando um check list ou escores de sistemas para a qualidade, mas sob o ponto de vista do seu potencial político, utilizada no contexto da globalização, particularmente no âmbito de políticas públicas onde se insere a inspeção do trabalho.

DIREITOS SOCIAIS

A noção dos direitos sociais é contemporânea da Declaração dos Direitos Humanos e emerge como uma diretriz para a igualdade. Trata-se de uma categoria de direitos diversos nos quais se inclui, entre outros, principalmente, a amplitude das relações trabalhistas no campo e na cidade, a previdência social e uma renda condizente com uma vida digna. Tem o caráter concreto de normas jurídicas e pressupõem a outorga de prestações do Estado no sentido da equalização das situações sociais desiguais. Entretanto, sob a ordem globalizada, o Estado perdeu a sua função regulatória e intervencionista, deixando a mediação, a arbitragem e o equilíbrio dos conflitos sob a égide de instituições financeiras internacionais que passam a introduzir suas próprias redes normativas e assim descaracterizando a validade desses direitos. No dizer de POLIDO, "o Estado tornou-se absolutamente obsoleto diante de suas próprias tarefas". O ideal de igualdade, numa era de transição entre a regulação e a desregulamentação, é substituído por uma lógica econométrica, tornando inevitável para os direitos sociais, num primeiro momento, a flexibilização, e em seguida a sua perda definitiva. Os direitos sociais, despotencializados, saem de sua armadura legal e passam à uma progressiva erosão e relativização que vai se legitimando. O impasse, portanto, na questão dos direitos sociais, para Polido é, "como sair de um conflito em que esses mesmos direitos são os principais atores. Como destravar ... um impasse entre uma situação meramente legal e outra legítima?"

CONTROLE SOCIAL E MUDANÇA SOCIAL

As questões envolvendo controle e mudança social suscitam a referência a determinados conceitos sociológicos. Referimo-nos à ANOMIA (Durkheim) e ALIENAÇÃO (Marx) idéias que surgiram como críticas aos valores das modernas sociedades industriais, calcadas no mercantilismo e individualismo. Horton(20) descreve, na coletânea de FORACHI e MARTINS (199O) como esses conceitos criticam os estados de desordem social segundo as idéias da utopia do bem estar social em que "a desumanização estabeleceu-se e os conceitos foram transmutados em coisas". Horton escreve que na visão de Durkheim "a anomia se refere aos problemas de controle social em um sistema social. ... os valores estão ausentes ou em conflito, os fins não estão ajustados às oportunidades estruturais, ou, ao contrário, os indivíduos não estão adequadamente socializados às diretrizes culturais", ou seja, que "a anomia é um estado social de anarquia ou de ausência de normas" supondo-se que "o egoísmo, a competição insaciável e a ausência de sentido e de objetivos poderiam ser as reações prováveis daqueles que vivem em uma sociedade anômica". Conquanto utilizada em situações penais e médico-legais, o conceito de anomia vem ganhando consistência em contextos mais recentes, como, por exemplo, no debate sobre o controle social de sistemas e atividades econômicas.

Por outro lado, o conceito de alienação remete-nos a uma discussão sobre a própria natureza do poder e da legitimidade do controle social do que a adequação e normatização mediada pelo controle social. O autor assinala que "Marx estava interessado nos problemas de poder e de transformação" e Durkheim "na manutenção da ordem". Mais adiante: "A ótica crítica da noção de alienação reside nas condições sociais que tornam os indivíduos separados da sociedade, sendo que esta não é vista como uma entidade abstrata e independente dos indivíduos, mas como uma extensão deles através de sua atividade pessoal".

Esses conceitos vão se tornando relevantes à medida que desenvolvem-se discussões sobre os impasses éticos e morais suscitados pela nova ordem econômica global pontuada por um crescente e avassalador nível de desigualdade e que se expande sob a ausência de ética e valores (HIRSCH, F., 1979). A angústia social generaliza-se não só pela alienação e perda de identidade, mas sobretudo, pela anomia, pela ausência de normas e de instrumentos de regulação das relações sociais. RIFKIN (1995) sugere a necessidade de se mudar o eixo da ação política democrática. deslocando-a do poder político estatal, porque falido, para as corporações econômicas, afinal as verdadeiras instâncias globais do poder político.

Nas diferentes culturas e sob diversas formas, a sociedade tem expandido a definição de democracia através de consolidar de forma prática o direito de controlar as atividades das corporações transnacionais. Esta luta para a democratização da economia tem crescido na mesma medida em que as corporações transnacionais expandem o seu poder e mostram claramente que não podem ter credibilidade em promover empregos e proteger o meio ambiente. Há uma tendência de unificar as diversas táticas de pressão, principalmente através da Internet, informando ao público em geral e expondo essas empresas ao boicote de produtos e a pressões sobre seus acionistas(21).

A OIT preconiza que nos programas de treinamento da inspeção do trabalho seja reforçada a necessidade de que o público em geral tome conhecimento dos riscos, perigos e agravos a saúde a que eles estão expostos pela atividade industrial, inclusive com programas dentro das escolas.

Em alguns países, a imprensa faz questão de acompanhar a inspeção do trabalho e divulgar os resultados de suas atividades.

Portanto, expandem-se os movimentos para reabilitar o controle social da desordem mundial, operando no vácuo do esvaziamento estatal, materializada em organizações não governamentais, conselhos comunitários, a imprensa, algumas brechas legais que permitiram a ascensão de profissionais dos Ministérios Públicos e, principalmente, a própria Internet. Desenvolve-se um consenso social também transnacional de que há um superaquecimento ambiental e social no planeta à custa de uma organização econômica cuja astronômica desigualdade sinaliza para uma irreversível perda de coerência.

Além disso, o prestígio do Ministério do Trabalho junto à sociedade brasileira, por exemplo, ainda resiste a essa descaracterização, situando-se como uma das últimas reservas morais do Estado no cenário da globalização, desregulamentação e flexibilização da legislação trabalhista. Há um foco de resistência, organizado em torno de entidades sindicais de servidores públicos, que tem impedido, até agora, a total descaracterização da inspeção do trabalho. Um Estudo agregando informações dos trabalhadores e patrões, avaliando a política nacional de inspeção do trabalho, bem como a postura, a atuação e imagem dos inspetores, apontou para escores entre regular e bom (ROSSO, S., org., 1999). A OIT assinala ainda, em recente pesquisa envolvendo pequenas empresas européias, os seguintes resultados:

- 75% concorda que a legislação em segurança e saúde é necessária;

- 66% disse que existem muitas leis as quais são muito complicadas;

- 81% acredita que dá pra pagar o custo do cumprimento da legislação; e

- 75% pensa que a ação da inspeção do trabalho é razoável.


4. MODERNIZAÇÃO: A INSPEÇÃO DO TRABALHO NA GLOBALIZAÇÃO

AUDITORIA, CERTIFICAÇÃO E ACREDITAÇÃO

Ao estudar-se como a arena política do trabalho, aí incluída a inspeção do trabalho, vem se tornando uma instância artificial e despotencializada, verifica-se algumas possibilidades de sua reenergização, a partir de elementos embutidos na própria dinâmica da globalização e argumentando finalmente como essa repolitização poderia reabilitar a principal atribuição da inspeção do trabalho, que é a proteção do trabalhador.

Este projeto estrutura-se em dois focos: um, voltado para o trabalho formal, a partir da utilização de conceitos e modelos de Auditoria, Certificação e Acreditação públicas, de como essa estratégia tem sido utilizada, não apenas como uma técnica de trabalho, mas como um recurso estratégico para uma ionização de espaços políticos. E a outra, focalizando no trabalho informal, verificando como se insere a inspeção do trabalho em territórios multidisciplinares e interinstitucionais no contexto de uma arena política mais complexa e em construção.

Aborda-se em primeiro lugar a funcionalidade de algumas estratégias que já se consolidam em outros ambientes e que começam a se reproduzir no mundo do trabalho, as quais podem representar uma via factível para esta repolitização.

A principal delas é a que vem sendo intrumentalizada pelo capital para energizar a arena da competição e torná-la supostamente objeto de controle social. Essa mesma estratégia tem sido utilizada também nas organizações não governamentais para a politização da arena do meio ambiente e a sua idêntica submissão ao controle social. Estabelecendo uma conexão específica, esses espaços da competição e do meio ambiente conformam um sistema particular de ações e respostas bem articuladas.

Por exemplo, as Certificações de qualidade do ISO ou as Certificações para a proteção ambiental do Greenpeace(22) ganham legitimidade respectivamente no espaço da competição e no do Meio Ambiente, porque dependentes de uma dinâmica de acreditação e controle social, viabilizada pela exposição de seus atores, de seus métodos e intervenções ao julgamento público, suscetibilizando esses espaços a pressões sociais e políticas.

A Certificação pelo capital na competição implica em uma espécie de bandeira positiva, introduzindo um instrumento destinado a um upgrade no nível da acumulação e do lucro em escala global e alavancando um fenômeno que já se denominou de turbocapitalismo. E as ações na área do Meio Ambiente sinalizam uma bandeira negativa, de reação e alarme para a entropia socio-ambiental resultante dessa ordem turbocapitalista supersônica, consolidando mecanismos de reversão sob os rótulos de Educação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável.(23)

Aparecem ainda outros desdobramentos políticos. A Certificação na competição evolui para uma aliança global(24), alavancando a competição e assim satisfazendo o inevitável upgrade do sistema capitalista. A Certificação ambiental(25) generaliza uma consciência dos limites do crescimento (HIRSCH, F., 1979), ocasionando respostas de acionistas das próprias empresas transnacionais e de estratos das sociedades industriais, exigindo-se critérios de segurança ambiental na exploração de recursos naturais e elaboração de produtos (SACHS, Y., 1993).

Para o mundo do trabalho, que ocupa uma espécie de interface na sociedade entre os espaços da competição e do meio ambiente, emerge também a possibilidade concreta de se dispararem mecanismos reversores da mesma qualidade. Esse mecanismo viabiliza-se com a institucionalização de uma Certificação para a Qualidade nos Ambientes do Trabalho, emitida por uma Auditoria Fiscal do Trabalho delegada pelo Estado.

Com a Certificação estatal para a qualidade nos ambientes de trabalho, produzem-se bandeiras positivas e negativas as quais supostamente gerariam mecanismos de reversão similares aos da competição e do meio ambiente, particularmente para reverter os agravos impostos aos trabalhadores pelo atual sistema de relações de trabalho e de riscos nos ambientes de trabalho. Com a visibilidade e controle social que é inerente ao processo de Certificação, energiza-se um potencial de conflitos e subsequentes ações para repolitizar a arena do trabalho, sobretudo a partir da própria sociedade. Parte-se do pressuposto de que tal Certificação teria o mesmo conteúdo político que a certificação positiva de produtos tem causado no espaço da competição e no mercado consumidor ou com a mesma qualidade que as Certificações ambientais tem causado no comportamento de acionistas de empresas transnacionais e na própria sociedade.

Se para o turbocapitalismo o seu limite parece ser consensualmente o Meio Ambiente, por que não incluir o fator humano, inerente às condições e meio ambiente de trabalho, sob essa mesma dimensão qualitativa?

Consolidando-se essa tendência abrem-se possibilidades concretas de um rebatimento do ônus conseqüente à globalização, desregulamentação e flexibilização das normas do trabalho e precarização de indicadores sociais sobre todos os atores da arena política do trabalho, principalmente sobre o capital, e não apenas sobre o trabalhador, como vem acontecendo. Além disso, o espaço político desencadeado por uma Certificação de Ambientes de Trabalho seria também ocupado por forças sociais que transcenderiam o espaço tripartite tradicional.

Sob tal cenário, introduzem-se diferenças de potenciais para os diversos atores sociais da arena do trabalho, o que em última análise constitui a própria essência da dialética no mundo do trabalho e da própria inspeção do trabalho. E dessa forma, abrem-se também as possibilidades de um novo perfil para a inspeção do trabalho e de subsequentes ações para a proteção do trabalhador.

Além disso, o controle social da Certificação, não sendo exercido pelo Estado, mas pela própria sociedade, como ocorre em outras Certificações, torna visível a cultura de relações do trabalho, condições e meio ambiente de trabalho embutida no universo empresarial, de forma ampla e indiscriminada.

A CULTURA FISCAL E A CULTURA DA AUDITORIA

A Certificação insere um olhar mais qualitativo sobre o mundo do trabalho, não sendo apenas um olhar técnico de um fiscal, isoladamente, mas o olhar de toda a sociedade. Propaga-se desse novo ambiente político dinâmicas sociais no sentido de reforço ou banimento. E assim como em outros Certificados de Acreditação Pública, desdobram-se potenciais não só de reforço para a própria arena da competição, no caso de certificações positivas, ou, de pressão, censura e até de banimento no caso de certificações negativas, como por exemplo, inelegibilidade de empresas para contratos e licitações públicas. Neste último caso, trata-se de mecanismo de repressão muito mais eficaz que um Auto de Infração, que muitas vezes tem a sua eficácia ameaçada pelos bloqueios de uma burocracia já assoberbada pela flexibilização e instabilizada pelas fraturas da atual desregulamentação. Nesse contexto, com a emergência do definitivo controle social sobre a inspeção do trabalho, ultrapassa-se o estágio da cultura fiscal instrumentalizada por notificações e autos de infração meramente reativos.

Abre-se uma cultura de Auditoria, proativa, instrumentalizada pela Certificação e Acreditação Oficial, nos moldes do INMETRO(26), do Greenpeace e do próprio ISO, utilizando-se a mesma linguagem da globalização. A Inspeção do Trabalho assume definitivamente a função de Auditoria Fiscal do Trabalho, e, ao invés de uma fiscalização de resultados estatísticos ou de uma simples busca idealista e expectante de qualidade dos ambientes de trabalho, a Auditoria produz uma Certificação de resultados sociais. Ao mesmo tempo, sinaliza-se para uma inspeção do trabalho solidária, multidisciplinar e em um espaço de legitimidade e sobretudo, de dignidade.

Este projeto pode incorporar-se ao processo de reação social, controle social e mudança social, em resposta à desordem e à anomia, no qual as forças sociais tem se debatido para exercitar o controle social progressivo das atribuições de um Estado em retirada, reagindo contra os rebatimentos sócio-ambientais destrutivos que se agigantam. O controle social aparece como elemento fundamental, de forma a expor publicamente os atores e manobras da classe hegemônica e influenciando a tomada de decisões políticas em todos os níveis.

ABORDAGENS NO SETOR INFORMAL

O Setor Informal ou o Terceiro Setor vai tomando forma e construindo uma nova arena política, caracterizada ainda pela indefinição. Mesmo empreendendo ações desarticuladas, o Terceiro Setor é apontado como a provável nova arena social através da qual devem ocorrer transformações sociais ainda mais abrangentes (RIFKIN, J., 1996). Neste caso, a inspeção do trabalho vai assumindo características também de uma organização informal, não governamental, empreendendo ações de retaguarda e consultoria para outras instituições sociais que buscam nesta arena definir o seu papel. Neste caso, uma Certificação do Trabalho pode ser implementada, nos moldes do Simples(27), vinculando-se aos certificados da Secretaria da Receita Federal, mediante uma simplificação dos recolhimentos trabalhistas. A arena do terceiro setor ganha reforço e consistência quanto mais ela vai atuando a nível local de forma que a inspeção do trabalho pode atuar como suporte multidisciplinar na elaboração de agendas e de análise crítica dos impasses (think globally, act locally(28)).


5. MODELOS EMERGENTES PARA A INSPEÇÃO DO TRABALHO:

A OIT(29), em dois trabalhos sob o mesmo título, aborda novas estratégias de prevenção dos agravos à saúde dos trabalhadores, destacando-se uma clara tendência à utilização de técnicas de auditoria:

- experiências de "self inspection", em que empresas solicitam a inspeção do trabalho com o objetivo de estabelecer riscos e controle de riscos aceitáveis, numa parceria entre a inspeção e o staff de gestão; essa estratégia tem sido utilizada por grandes empresas e pressupõe uma cultura de segurança em nível elevado; a inspeção do trabalho vai praticamente desenvolver um trabalho de Auditoria, mas esse sistema não implica ainda na emissão da Certificação;

- Programas de Gerenciamento de Riscos por Objetivos, em que a inspeção do trabalho participa em um programa conjunto articulando as ações para a qualidade e segurança, desenvolvendo uma abordagem focal, por uma seleção de agentes de riscos e sistemas de controle prioritários; nesse caso, a empresa pode solicitar uma Certificação Voluntária, quando a empresa deseja obter um reconhecimento e acreditação sobre os seus progressos; em outros modelos, é utilizada uma pontuação para estabelecer-se estudos comparativos com empresas de atividade semelhante e assim se avaliar a gestão de riscos de uma atividade industrial específica em determinada área ou região;

- Avaliação de Performance, que, segundo a OIT, vem se constituindo a ênfase principal dos programas de prevenção sob o contexto de uma moderna inspeção do trabalho; neste caso, há uma pontuação envolvendo inclusive escores sobre os riscos que afetam também a comunidade fora da empresa; no caso de uma pontuação negativa, a empresa é submetida a inspeções preventivas;

- Programa de Proteção Voluntária, em que a empresa solicita a colaboração da inspeção do trabalho para um programa em que os sistemas de gestão e as normas regulamentadoras são confrontadas para uma aferição; em caso de eficiência no cumprimento das normas, a Autoridade da inspeção do trabalho emite uma Certificação em que reconhece-se publicamente a eficiência dos sistemas de gestão de riscos naquela empresa; de acordo com a Certificação, a empresa pode ser retirada da lista de prioridades da inspeção do trabalho;

Verifica-se, também, que durante a implementação da Auditoria podem haver ações para o estímulo de sistemas de gestão, porém, como parte do processo de Auditoria, e não de forma isolada. A Gestão constitui apenas uma parte de um processo mais amplo na área de segurança e saúde do trabalhador, que inclui o Planejamento e a Auditoria.

A OIT assinala ainda, práticas recentes de outorga de bônus para empresas que cumprem de maneira satisfatória o gerenciamento de riscos e assim, de acordo com os resultados de uma auditoria de inspeção, podem receber descontos outorgados pelas próprias instituições seguradoras. Em alguns países, as empresas seguradoras dão um desconto de até 25% nos prêmios de seguro para pequenas empresas que demonstrarem satisfatório gerenciamento de riscos através de uma Auditoria oficial. Em outros países, os autos de infração podem ser revertidos se a empresa demonstrar, posteriormente, estratégias de cumprimento de normas para o controle dos riscos. No Brasil esse sistema poderia ser implantado com a participação da Previdência Social em relação aos recolhimentos previdenciários obrigatórios.


6. CONCLUSÕES: UMA PROPOSTA PARA A NR-2

As experiências com as certificações do ISO, do INMETRO e do Greenpeace no Brasil, ao desenvolverem sistemas de certificação e acreditação, lançaram perspectivas concretas para o controle social de produtos e serviços. A competição torna-se transparente, reduz-se o índice de fraudes contra o consumidor e observa-se uma maior vigilância ambiental.

O Projeto deste Trabalho procurou aplicar essa lógica ao mundo do trabalho, buscando coerência também com a trajetória histórica dos movimentos sociais no mundo globalizado. Um Sistema de Certificação Pública para a Qualidade nos Ambientes de Trabalho coloca-se assim como uma alternativa consistente para a reabilitação do espaço político da arena do trabalho, recuperando da mesma forma a legitimidade e força da inspeção do trabalho sob a modernidade.

Em alguns países, evoluem sistemas ainda informais de Auditoria e Certificação e a questão principal parece ser a identificação de um arcabouço legal que lhe dê sustentação. Projetamos, no Quadro abaixo, algumas sugestões de diretrizes para a formatação de uma nova NR-2:

DIRETRIZES PROPOSTAS

NR-2 – AUDICAT-AUDITORIA PARA A CERTIFICAÇÃO
DOS AMBIENTES DE TRABALHO

Sistema

SINCAT-Sistema Nacional para a Certificação dos Ambientes de Trabalho

Certificação

AUDICAT – Certificação variável, de acordo com a situação das Relações de Trabalho e dos Sistemas de Planejamento e Gestão em SST por parte da empresa;

  • AUDICAT/M – Qualidade de Ambientes de Trabalho Mínima;
  • AUDICAT/S – Qualidade de Ambientes de Trabalho Satisfatória;
  • AUDICAT/A – Qualidade de Ambientes de Trabalho Adequada
  • AUDICAT/P – Qualidade de Ambientes de Trabalho Plena

Vínculos

Vínculos com Certificados da Previdência, INMETRO, Receita Federal e IBAMA, podendo tornar inelegíveis empresas para licitação e contratos públicos em caso de ausência de certificação;

Execução

  • Equipe multidisciplinar de Técnicos RT, SST (1) e Fundacentro;
  • Articulação com o IBAMA para o diagnóstico das atividades industriais em conexão com o meio ambiente

Implementação

  • Treinamento dos fiscais para a técnica da Auditoria
  • Diagnóstico da empresa , com uma pontuação inicial (1-2 semanas);
  • Suporte da inspeção para a organização de um sistema de gestão, introduzindo as bases de uma cultura de segurança (2-4 meses);
  • Nova pontuação, com a Certificação definitiva (1-2 semanas);

Pontuação da

Empresa

  • Utilização do mesmo sistema para o cálculo de infrações (ementas); neste caso, introduz-se uma pontuação positiva para a empresa, quando for o caso;
  • Entrada de dados e cálculos relacionais nos moldes do SFIT;
  • Pontuação negativa para empresas recorrentes na Justiça trabalhista ou que explorem o trabalho infantil, além das penalidades legais;
  • Pontuação positiva para empresas que incluam nos seus quadros minorias sociais;

Pontuação do

Auditor

Sistema de pontuação mista, quantitativa e qualitativa (Inspeção, pontuação quantitativa; Auditoria, pontuação qualitativa)

SFIT

Manutenção do sistema atual de inspeção do trabalho; as equipes de Auditoria fariam experiências paralelas à inspeção do trabalho convencional, para elaboração de estudos comparativos; a vigilância da Certificação seria realizada pelos trabalhadores e sindicatos; a perda da Certificação tem um custo político exclusivamente para a empresa, que voltaria a receber inspeções convencionais;

Acreditação e Divulgação

Anuário AUDICAT, com todas as empresas certificadas e a sua respectiva pontuação; documento de divulgação nacional, podendo ser utilizado pela empresa como instrumento de competição em caso de certificação positiva ou pela Administração Pública como instrumento de restrição a contratos e licitações públicas em caso de Certificações abaixo de um patamar; Anuário divulgado na Internet e na Imprensa;

Intervenção

A Certificação contrapõe-se ao Auto de Infração; não há multas e o sistema depende de controle social e divulgação na mídia e na Internet expondo a empresa ao escrutínio da imprensa e do público.

Site para

Discussão

Proposta para a abertura de uma Sala de Discussão sobre o Projeto

na Homepage do SINAIT, aberta à participação ampla.

(1) RT-Relações de Trabalho; SST – Segurança e Saúde do trabalhador


NOTAS

1. http://www.jus.com.br/doutrina/sociglob.html (Polido, Fabrício. Os Direitos Sociais numa era de transição entre a regulação e a desregulação econômicas: aspectos da globalização);

2. Alain Torraine aborda as crises organizacionais no capítulo "Os movimentos sociais" (Forachi e Martins, 1977).

3.http://www.ilo.org/public/english/dialogue/govlab/admitra/index.htm

(OIT – Lurvei, Roy. Novas estratégias para a inspeção do trabalho)

4.MTE - Núcleo Intersindical de Conciliação Trabalhista – Manual Básico

5.Seminário sobre Gestão de Risco (2000, Belém, Pa)

6.http://www.saudeetrabalho.com.br/textos.html (Miranda, Carlos Roberto. Organização dos Serviços de Saúde do Trabalhador)

7.http://www.saudeetrabalho.com.br/textos/html (Rigotto, Raquel. Saúde dos Trabalhadores e Meio Ambiente em Tempos de Globalização e Reestruturação Produtiva)

8.http://www.majbill.vt.edu/geog/faculty/toal/Papers/Hawaii.htm (Luke, T. Estados falidos e o capitalismo de contrabando);

9.http://www.eaie.nl/activities/ps/EBS/Busethic.html (Rudzki, R. Ética nos negócios)

10.http://www.thirdworldtraveler.com/index.htmlhttp://www.thirdworldtraveler.com/index.html (Controlando Corporações e democratizando a economia mundial)

11.http://www.jus.com.br/ (Brevidelli, S. A função social da empresa: olhares, sonhos e possibilidades)

12. El trabajo infantil: que hacer? (Documento de uma Reunião Tripartite - OIT, junho de 1996)

13. Seminário Sobre o Trabalho Infantil (Belém, PA, 2000)

14. Relatório do IBGE "recrudescimento do trabalho infantil no período de 1998/99" (cf. O Diário do Pará, 24.09.2000)

15. http://www.jus.com.br/ (Suzuki, I. O paradoxo do Direito do Trabalho frente ao desaparecimento de seu objeto: o desemprego estrutural como efeito da globalização)

16.OIT-Encyclopaedia Of Occupational Health (ISO-International Standardization of Organization)

17.http://www.saudeetrabalho.com.br/index.html (Monteiro, M. S.; Gomes. J. R. De Taylor ao Modelo Japonês: Modificações ocorridas nos modelos de organização do trabalho e participação no trabalho)

18.MTE/Fundacentro – 1996 Forum sobre Segurança e Saúde nas Novas Relações de Trabalho

19. Relatório do Milênio. Nações Unidas, 2000

20. Horton, J. Anomia e alienação: um problema na ideologia da Sociologia.

21.http://www.technorealism.org/ (Dery, M. Estariam as pessoas tendo maior controle sobre suas vidas com a Internet?)

22. organização não governamental para o meio ambiente.

23.Gueiros, S. "Educação Ambiental como instituto ideológico do Desenvolvimento Sustentável" Monografia de conclusão de Curso de Especialização em Educação Ambiental (UFPA, 1995)

24. http://www.standards.com.au/ (Anunciado: Formada Aliança para Certificação Global)

25. Forest Stewardship Council – sistema independente de certificação para projetos de sustentabilidade florestal (Jornal Diário do Pará, 17.09.2000)

26. Instituto Nacional de Metrologia.

27.legislação fiscal do Estado para pequenas empresas

28. "pense globalmente, atue localmente", jargão neoliberal;

29. http://www.ilo.org/public/english/dialogue/govlab/admitra/index.htm (Richthofen, W. Novas estratégias para a inspeção do trabalho (Lurvey, R. Novas estratégias para a inspeção do trabalho


BIBLIOGRAFIA

HIRSCH, F. Limites Sociais do Crescimento. Rio de Janeiro; 1979.  A Importância da Inspeção do Trabalho – Manaus – uma experiência pioneira. SINAIT, 1999.

ROSSO, S., org. A Inspeção do Trabalho. SINAIT, 1999.

RIFKIN, J. O Fim dos Empregos. São Paulo: Makron Books do Brasil Ed Ltda. 1995.

PASTORE, J. Flexibilização dos Mercados de Trabalho e Contratação Coletiva. São Paulo: Ltr, 1995.

ROSEN, G. Da Polícia Médica à Medicina Social. Rio de Janeiro: Ed Graal 1980. FORACHI, M. M. e MARTINS, J. S. Sociologia e Sociedade. Leituras de Introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: Livros Tec e Cient Ed Ltda., 1977.

MANNRICH, N. Inspeção do Trabalho. São Paulo: Ltr, 1991.

REDCLIFT, M. Sustainable Development. U.K.: Ed Mathews & Co., 1987.

SACHS, Y. Estratégias de Transição para o Século XXI. São Paulo: Livros Studio Nobel, 1993.

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SOUTHALL, R. Trade Unions and The New Industrialisation of the Third World U.K.: Zed Books, 1988.

JONES, K e MOON, G. Health, Disease and Society. U.K.: Rootledge & Kegan Inc., 1987. Segurança e Medicina do Trabalho S. Paulo: Ed Atlas: 2000



Informações sobre o texto

Monografia apresentada ao Concurso do 18o. ENAFIT-Encontro Nacional dos Agentes da Inspeção do Trabalho classificado em 2° lugar, realizado em São Luis, em outubro 2000.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEIROS JÚNIOR, Samuel; LOPES, Airton da Silva. Globalização, flexibilização e desregulamentação. Modelos emergentes para a inspeção do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2104. Acesso em: 27 abr. 2024.