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Breves considerações sobre o princípio da fungibilidade, suas variantes e novas aplicações

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03/06/2004 às 00:00
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O princípio da fungibilidade, em linhas gerais, recomenda seja um recurso conhecido por outro se ausente a má-fé e se houver divergência, doutrinária e/ou jurisprudencial, sobre qual o cabível contra a decisão impugnada.

1. INTRODUÇÃO

O princípio da fungibilidade, em linhas gerais, recomenda seja um recurso conhecido por outro se ausente a má-fé e se houver divergência, doutrinária e/ou jurisprudencial, sobre qual o cabível contra a decisão impugnada.

Segundo essa recomendação buscou-se evitar prejuízos à parte em razão da complexidade do sistema recursal na vigência do Código de Processo Civil de 1939, bem como observar, no meu entender, os princípios da economia processual, da celeridade dos autos processuais, da instrumentalidade das formas e do devido processo legal.

Expresso no Código de Processo Penal, no Código de Processo Civil anterior e implícito no direito processual civil atual, o princípio da fungibilidade foi tradicionalmente estudado no campo recursal.

No entanto, diante das modificações ocorridas no direito processual civil e frente às "Reformas" que foram promovidas na legislação substantiva, a aplicação do princípio da fungibilidade passou a ser estudada de forma diferente, surgindo variantes interpretativas e novas aplicações, não somente no campo recursal, mas em relação aos pronunciamentos judiciais e os meios colocados à disposição das partes para obter a tutela jurisdicional.

Neste breve estudo foi identificada a origem e o significado do princípio, buscando situá-lo no do sistema jurídico como um todo, à luz da Constituição Federal e seus princípios, em especial os aplicáveis ao processo civil.

Foi feita uma comparação da fungibilidade no direito processual penal e no direito processual civil, explicitando a legislação sobre o tema e informando o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre os requisitos para a sua aplicabilidade (ausência de má-fé e erro grosseiro).

Por fim, buscou-se informar o leitor sobre as novas aplicações do princípio da fungibilidade, no intuito de despertar o interesse pela busca de outras situações em se seja possível aplicar o princípio, ainda que sejam outros os requisitos para a sua aplicabilidade no atual sistema processual civil, possibilitando a utilização do processo como instrumento útil, tempestivo e justo na prestação jurisdicional.


2. A FUNÇÃO DO PROCESSO CIVIL NO EXERCÍCIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Um dos objetivos da Constituição Federal promulgada em 1988 foi assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais [1], também denominados Direitos e Garantias Fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a cidadania, os valores do trabalho, a livre iniciativa, a defesa da paz, a vida, a liberdade, a propriedade, a igualdade, a segurança [2].

O direito processual civil, enquanto "sistema de princípios e normas que regulam o funcionamento da jurisdição civil, tendo em vista o direito de ação, que contenha lide civil, e o direito de defesa, bem como a estruturação infraconstitucional dos órgãos do Poder Judiciário e seus auxiliares - exceto o que respeita à organização judiciária - e, ainda, a disciplina de todos os casos de jurisdição voluntária" [3], é o ramo do direito com a função de assegurar o exercício dos direitos consagrados na Constituição, estabelecendo para tanto os meios adequados para acionar o Poder Judiciário.

De fato, não basta existir o direito material [4] expresso na legislação - constitucional ou infraconstitucional - se o seu titular não estiver apto a exercitá-lo, valendo-se de um processo efetivo e eficaz, eleito como "instrumento da realização da justiça" [5].

Em se tratando do meio/instrumento hábil para assegurar o exercício de direitos, nada mais certo que a busca incessante pelo processo célere, efetivo, eficaz, acessível ao titular do direito, mas sobretudo seguro, justo e tempestivo, sob pena da decisão final, apesar de juridicamente perfeita, não poder mais surtir efeitos sobre a situação fática sobre a qual se debruçaram advogados, promotores, juizes, peritos, demais serventuários do Poder Judiciário, e sobre a qual investiram seus esforços as partes envolvidas.

O Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 vem sofrendo várias reformas [6], nas quais se verifica realmente a busca pela celeridade do processo [7] e a entrega efetiva, por vezes imediata da prestação jurisdicional [8].

Bem verdade que essas inovações ainda estão longe da perfeição, eis que feitas fora do conjunto como um todo, sendo várias as leis que vêm modificando o texto substantivo civil. Além disso, é de se lembrar ser dinâmica a sociedade e as inovações tecnológicas para as quais o direito deveria ter regras bem definidas.

Além disso, ditas inovações encontram resistência por muitos integrantes do Poder Judiciário, por vezes injustificadas diante da completa ausência de proximidade com a realidade e excessivo apego à forma e aos procedimentos burocráticos.

No entanto, é de relevância o papel do jurista ao zelar pela correta aplicação da lei e dos princípios jurídicos, buscando colaborar para o aperfeiçoamento do sistema processual civil, sempre em busca do processo adequado, seja no papel de estudioso ou doutrinador, no exercício das funções jurisdicionais, legislativas ou do ministério público.

O princípio da fungibilidade, objeto do presente estudo, possui a característica de tornar mais célere o processo, sem prejuízo dos atos praticados, razão pela qual, no meu entender, deve ser explorado e aplicado, se não aperfeiçoado e ampliado, seguindo as novas tendências, respeitados os direitos do contraditório e da ampla defesa das partes envolvidas.


3. PRINCÍPIOS. PRINCÍPIOS DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL

O termo princípio vem do latim ‘principium’ que significa começo, origem ou base, e pode ser definido como "... um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam" [9].

Presentes em todos os níveis legislativos há princípios explícitos e implícitos, constitucionais, legais e infralegais. Segundo ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA entre todos, os constitucionais são os de maior importância, pois se sobrepõe aos demais devendo sempre ser observados. Isso porque a Constituição, por sua própria definição, indica quem detém os poderes estatais, quais são esses poderes, como devem ser exercidos e quais os direitos e garantias que as pessoas têm em relação a eles.

Conceituando princípios jurídicos implícitos redigiu ALEXY: "não precisam ser estabelecidos explicitamente, senão que também podem ser derivados de uma tradição de normas detalhadas e de decisões judiciais que, para o geral, são expressões de concepções difundidas acerca de como deve ser o direito". [10]

Ainda que existam divergências doutrinárias quanto a classificação de princípios, normas e regras [11], pode-se afirmar, sem temor de errar, que unânime é o entendimento de que os princípios possuem grau relevante de importância em todo o ordenamento jurídico, devendo sempre ser observados, respeitados e aplicados, ainda mais se Constitucionais.

Isso porque, conforme a lição tradicional de HANS KELSEN [12], a Constituição é o fundamento de validade formador da unidade de interconexão criadora do sistema jurídico, regulando a produção de normas jurídicas gerais, determinando o conteúdo da legislação futura e representando o escalão de direito positivo mais elevado de toda a ordem jurídica. Sendo os princípios constitucionais "aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica" [13], não restam dúvidas de que são de extrema importância o papel e o lugar por eles ocupados.

CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO [14] esclarece que "princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá harmônico."

Afirma ainda o citado autor que a violação de princípios constitucionais é a forma mais grave de inconstitucionalidade, pois representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de estrutura mestra. Assim também parece a TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER [15], que ao discorrer sobre o desrespeito aos princípios jurídicos, conclui que a sua violação é potencialmente mais grave do que violar texto de lei ou da própria Constituição Federal.

Dessa forma, ao considerar isoladamente um dos objetivos da Constituição de 1988, de assegurar o exercício dos direitos nela consagrados, pode-se afirmar que os princípios processuais, incluindo-se aqui os implícitos, cumprem função constitucional, devendo ser respeitados e aplicados em observância à ordem suprema.

Pode-se afirmar ainda que os princípios constitucionais, mesmo aqueles que não estão diretamente ligados ao direito processual civil, a ele se aplicam. É o caso, no meu entendimento, do princípio da eficiência, que veio a se tornar expresso no artigo 37 da atual Constituição Federal com a Emenda nº 19/1998, e determina que a administração de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (pelo que se pode estender a determinação ao Poder Judiciário), buscarão a eficiência em suas atividades.

A atual Carta Magna consagrou expressamente muitos princípios que também se aplicam diretamente ao direito processual civil, entre eles e a título de exemplo o da legalidade, da isonomia, do devido processo legal, da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório e da ampla defesa, do juiz natural (proibição de tribunais de exceção), da proibição da prova ilícita, da publicidade dos atos judiciais, do duplo grau de jurisdição, da motivação dos atos judiciais, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos magistrados.

Entre outros princípios aplicáveis ao direito processual civil, ora citados a título de exemplo estão o da economia processual, o da instrumentalidade das formas, o da celeridade dos atos processuais, o da segurança jurídica e o princípio objeto deste estudo, o da fungibilidade.


4. O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE

4.1. SIGNIFICADO

O termo ''fungibilidade'' significa a substituição de uma coisa por outra. RUI PORTANOVA aponta como sinônimas as expressões "recurso indiferente", "permutabilidade dos recursos" e "conversibilidade dos recursos". Nota-se, portanto, que na doutrina processualista, falava-se em fungibilidade apenas referindo-se à matéria recursal.

Nos termos do artigo 50 do Código Civil, é fungível a coisa que pode ser substituída por outra, da mesma espécie, qualidade e quantidade.

Pelo princípio da fungibilidade, com destaque à sua aplicação ao direito processual, dá-se prioridade à finalidade visada em uma ''impugnação'' [16] em relação à sua forma. Ou seja, é possível - em determinados casos ressalte-se - dar-se por válida uma ''impugnação'', independentemente da espécie escolhida, do nomen juris que se tenha atribuído à mesma e da quantidade da matéria a ser enfrentada.

Nas palavras de TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER [17], o princípio "(...) recomenda que o órgão do Judiciário receba um recurso por outro, se houver hesitação, quer no plano da doutrina, quer no da jurisprudência, quanto a qual seja o recurso cabível de certa decisão."

4.2. FUNGIBILIDADE NO DIREITO PROCESSUAL PENAL E A VERDADE REAL NO DIREITO PROCESSUAL

No Código de Processo Penal o princípio da fungibilidade está expresso no artigo 579, e também foi estudado com ênfase em sede de matéria recursal:

"Art. 579 - Salvo hipótese de má-fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro".

Observam os penalistas (conforme MIRABETE), e com propriedade, que a lei limita a fungibilidade, não devendo ser admitido o recurso se ficar reconhecida a má-fé do recorrente, sendo indicativo dessa situação o erro grosseiro na sua interposição.

Nota-se portanto que na legislação penal é requisito para a aplicação do princípio da fungibilidade a ausência de má-fé.

Além disso, a fungibilidade em matéria penal é de mais fácil aceitação e mais freqüente aplicação do que em matéria de direito civil, conforme se verifica pelas seguintes ementas:

"1. Em face do princípio da fungibilidade, não é suscetível de causar prejuízo ao paciente a controvérsia existente acerca do cabimento, na espécie, de correição parcial ou de apelação.

2 - Suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099-95). A recusa do promotor em propô-la deve ser submetida ao Procurador-Geral de Justiça, por aplicação analógica, no que couber, do art. 28 do Código de Processo Penal. Precedente do Supremo Tribunal: RE 75.343, T. Pleno, sessão de 12-11-97."

(STJ. 1ª Turma. HC-76439 / SP. Relator Min. OCTAVIO GALLOTTI. DJ DATA-21-08-98 PP-00004.)

"Recurso: princípio da fungibilidade: aplicação ao Processo Penal: HC deferido para que se processe como embargos infringentes. Impugnação interposta no prazo desses contra acórdão condenatório tomado em apelação por maioria de votos e visando à prevalência do voto vencido, sendo irrelevante o equívoco de denominá-la de "razões de apelação"."

(STF. 1ª Turma. HC-80220/SP. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ DATA-25-08-00 PP-00060.)

"PROCESSO CIVIL – RECURSO ESPECIAL – AG. REGIMENTAL – SERVIDOR – 3,17% - DECISÃO COLEGIADA – EFEITO INFRINGENTE - IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA – ERRO GROSSEIRO.

1 - Em se tratando de Recurso Especial julgado, seu acórdão não se presta para ser atacado pela via do Agravo Regimental. Este somente é cabível contra decisões monocráticas do "Presidente da Corte Especial, da Seção, da Turma ou de Relator" (art. 258, do RISJT).

Sendo tal instrumento completamente impertinente, porquanto há previsão expressa, em norma jurídica própria, do adequado, não se cogita na aplicação do princípio da fungibilidade, em virtude de erro grosseiro.

2 – Precedentes (AG.Reg. nos EDcl. em EDcl. no REsp nº 195.766/ MG, AGReg. nos EDcl. no AGReg. no AG nº 175.779/PB e AGReg. e EDcl. no REsp nº 143.651/RS).

3 – Agravo regimental não conhecido."

(STJ. 5ª Turma. AGRESP - 232350/PB. DJ DATA:08/04/2002 PÁGINA:256 Relator JORGE SCARTEZZINI. Unânime.)

No meu entendimento, isso ocorre pela força da doutrina, que destaca ser função das normas de direito penal e de processo penal, em suma, apurar a verdade real (também chamada material) dos fatos ocorridos, aplicando a legislação de forma justa, de forma a garantir a paz social e a convivência harmônica em sociedade, mediante a efetiva realização da pretensão punitiva do Estado e das medidas preventivas, garantindo-se o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa dos acusados.

Entretanto, embora seja corrente a lição de que no direito penal busca-se a verdade real e no direito processual civil é privilegiada a verdade formal, ou seja, aquela que está nos autos do processo, mesmo que a que tenha ocorrido no mundo dos fatos tenha sido diversa, tenho que em processo civil também deve ser priorizada a busca da verdade real, e portanto, a aceitação e aplicação da fungibilidade, com esse objetivo, deveria ter maior alcance.

ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS [18] é enfático ao defender a busca da verdade real também no direito processual civil:

"O Juiz, ao sentenciar, deve sempre procurar fazê-lo com base na verdade real. Não há espécie de prova que suplante outra. O próprio exame pericial, que é prova técnica por excelência, não vincula o juiz que pode formar sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos (art. 436).

Distante da realidade está a afirmação de que, em processo penal, a lei exige a verdade absoluta e, em processo civil, contenta-se com a verdade relativa. Nada disso. Em ambos os processos, o juiz pesquisa a verdade real. Caso a ela não se chegue, é certo que lança mão de outros critérios, pois, em nenhuma hipótese, se exime de sentenciar (art. 126). Assim, em processo penal, à falta de verdade real, adota-se o critério da certeza absoluta para a condenação; em processo civil, o critério subsidiário, quando se trata de direitos disponíveis, será a distribuição do ônus da prova, interpretando-se a dúvida contra quem tem o encargo de provar. Tratando-se de direitos indisponíveis, a certeza também deve ser absoluta, tal seja o interesse público revelado na relação.

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Os critérios de subsidiariedade não afastam o princípio da verdade real. Apenas no caso de ela não ser alcançada é que se emprega o critério, sem que a subsidiariedade tenha prevalência sobre a realidade do fato. A própria revelia, que tem força de criar presunção de verdade dos fatos (art. 319), não opera diante da verdade real.

A verdade real, no entanto, só deve ser pesquisada nos autos e o juiz, para garantia das partes, deve sempre fundamentar a sentença (art. 131)."

(Grifo nosso.)

Renomada e atual doutrina [19] também chama a atenção para o fato de que, antigamente, a coisa julgada em processo civil fazia do preto, branco, e do quadrado, redondo, mas que atualmente não se pode conceber que uma realidade "A", perfeitamente verificável, não possa produzir efeitos porque deve ser mantida a ordem "B", determinada nos autos do processo, apenas em razão do trânsito em julgado. Ao meu ver, essa preocupação privilegia a busca da verdade real (ou material), pelo que há que se encontrar meios de aplicar a fungibilidade como instrumento efetivo na sua busca.

4.3. FUNGIBILIDADE NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL. HISTÓRICO. LEGISLAÇÃO. REQUISITOS. MÁ-FÉ.

ARRUDA ALVIM ensina que a origem do princípio da fungibilidade está no direito alemão, no qual existiam duas teorias. A subjetiva, pela qual o recorrente perderia o direito ao recurso se tivesse interposto o cabível à decisão correta que deveria ter sido dada, mas que não foi proferida (exemplo: deveria ter sido proferida decisão interlocutória, o Juiz sentenciou e o recorrente agravou). De outro lado a teoria objetiva, pela qual não interessava o erro do juiz, mas sim a interposição do recurso cabível contra a decisão proferida, certa ou errada.

Ambas as teorias foram superadas com a chegada do princípio do recurso indiferente, hoje denominado de teoria do maior favorecimento, orientando que deveria ser recebido o recurso em qualquer das situações acima expostas.

No direito pátrio o artigo 810 do Código de Processo Civil anterior, de 1939, acolhia expressamente o princípio da fungibilidade, também privilegiando a matéria recursal:

"Art. 810 - Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou Turma, a que competir o julgamento."

Evidencia-se do dispositivo legal que eram dois os requisitos para a aplicação do princípio da fungibilidade: a) a ausência de má-fé [20]; b) ausência de erro grosseiro (existindo erro, deveria o mesmo ser escusável).

O artigo 810 foi suprimido do atual Código de Processo Civil, levando muitos doutrinadores a sustentarem que, diante da simplicidade do sistema recursal implantado em 1973 qualquer erro seria grosseiro, e que portanto desnecessária seria a sobrevivência do princípio.

Esse raciocínio foi inclusive objeto de comentário expresso na exposição de motivos do CPC, elaborada pelo então Ministro da Justiça, Alfredo Busaid (itens 31 e 33), ao afirmar que o princípio não atingiu seus objetivos porque era grande a freqüência com que os recursos, "erroneamente" interpostos, não eram conhecidos nos Tribunais, e que o atual Código simplificava sobremaneira o sistema de recursos, dando a entender que seria dificílimo surgirem dúvidas objetivas sobre qual o recurso cabível.

No entanto, a ausência de erro grosseiro não é o único requisito a ser verificado. Não se pode perder de vista a avaliação da presença ou não da má-fé, assim disciplinada pelo artigo 17 do Código de Processo Civil:

"Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

Vl - provocar incidentes manifestamente infundados;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório." (Inciso acrescentado pela Lei nº 9.668, de 23.6.1998).

Pode ficar caracterizada a má-fé se a parte utilizar do processo, instrumento que ativa e movimenta a máquina judiciária, para: a) discutir fato incontroverso, como por exemplo opor embargos à execução questionando termos de acordo realizado ou reconhecimento do pedido feito anteriormente para furtar-se ao cumprimento da obrigação; b) deixar de cumprir ordem judicial sem apresentar prova de justa causa com o fim de prolongar o andamento do processo, como não devolver autos em carga, deixar de depositar honorários periciais com os quais concordou após requerer a produção da prova; c) interpor recursos desnecessários com o fim de prolongar o andamento do processo; d) se houver intuito manifestamente protelatório na interposição de recursos. Quanto a este último inciso do artigo 17 do Código de Processo Civil, há divergência quanto ao significado objetivo do que seja "manifestamente protelatório", o que enseja inclusive estudo individualizado.

PONTES DE MIRANDA considerava como indicadores da presença da má-fé para fins de não aplicação do princípio da fungibilidade: a) usar do recurso impróprio de maior prazo, por haver perdido o prazo do recurso cabível; b) valer-se de recurso de maior devolutividade para escapar à coisa julgada formal; c) protelar o processo lançando mão do recurso mais demorado; d) provocar divergência na jurisprudência para assegurar-se, depois, outro recurso.

Quanto ao último indicador (provocar divergência na jurisprudência para assegurar-se, depois, outro recurso), ouso discordar do doutrinador e não o considerar como indicativo de má-fé. Isso porque o Código prevê a apreciação de questões por colegiado, podendo haver tomada de decisões por maioria, significando que não é necessário a unanimidade para a entrega da tutela jurisdicional. Ademais, há previsão relativa à uniformização de jurisprudência (art. 476 e seguintes do CPC,) podendo o juiz solicitar o pronunciamento prévio do Tribunal quando verificar divergência de entendimento no próprio Tribunal ou outro.

A tendência ao inconformismo com decisão que lhe é desfavorável é natural e inerente ao ser humano. Procurar quem compartilhe de seu entendimento e buscar o seu direito, conforme seu entendimento, é a base de sistema recursal, sendo a provocação de divergência um meio hábil a atingir essa finalidade, e não indicativo de má-fé.

4.4. MÁ-FÉ E A QUESTÃO DO PRAZO

A questão que mais influenciou na identificação da má-fé, para fins de aplicação do princípio da fungibilidade, foi o prazo no qual a parte interpôs o recurso que elegeu como cabível.

Segundo parte da doutrina [21], existindo dúvida sobre o recurso a ser interposto, o que em geral se restringe atualmente à opção entre o agravo ou a apelação [22], para demonstrar boa-fé o recorrente deveria interpor o recurso que julgasse cabível, dentro do menor prazo concedido às hipóteses possíveis.

Assim, se a parte entendesse cabível a apelação, para não correr o risco de não ser conhecido o seu recurso, deveria promover a interposição da apelação no prazo do agravo, que é menor. Com isso, estaria o recorrente demonstrando que não havia a intenção de ampliar o prazo pela interposição do recurso "errôneo", e o recurso poderia ser conhecido como um ou outro, conforme o entendimento adotado no Tribunal sobre qual o recurso adequado.

No meu entender, por outro lado esse fato poderia insinuar que o recorrente entendia ser cabível o agravo, nominou recurso por apelação e o interpôs no prazo menor (do agravo) em função da divergência. Isso revelaria o perfeito conhecimento sobre a possibilidade da aplicação do princípio da fungibilidade. Ou ainda, poderia a parte ter simplesmente nominado erroneamente o recurso, por equívoco ou desconhecimento da legislação, não importa. O que importa é que a parte não pode ser prejudicada pelo não recebimento de recurso contra decisão que lhe é desfavorável. É necessário e imperioso privilegiar-se o direito à forma.

Há posicionamento doutrinário, do qual partilho, entendendo que não se pode exigir a interposição do recurso no menor prazo [23].

Um dos aspectos que devem ser considerados para fundamentar essa conclusão é o de que os prazos recursais podem ser aproveitados pelas partes, integral ou parcialmente. Ou seja, a parte dispõe de quinze dias para interpor recurso de apelação, mas pode utilizar-se de todos esses dias, ou de quantos julgar necessário, até o limite de quinze dias. Tanto é assim, que a parte não precisa interpor o recurso, impreterivelmente, no décimo quinto dia. É possível recorrer antes mesmo do início da fluência do prazo, independentemente de intimação oficial, sendo que o ato da interposição do recurso torna desnecessária a intimação por meio de publicação no Diário de Justiça, sendo prática comum nos órgãos do Poder Judiciário dispensar o ato nesses casos.

Outra razão pela qual não se deve exigir do recorrente a interposição do recurso que entende cabível no prazo menor é que se o princípio da fungibilidade recomenda seja conhecido um recurso por outro, deve admitir também a troca do próprio prazo [24].

Na argumentação de NELSON NERY JÚNIOR, "não seria razoável exigir-se do recorrente, que observasse o prazo do recurso que deveria haver sido interposto (o correto) porque:

a)isto configuraria imputar-se-lhe, presumivelmente, a má-fé, quando o contrário é que seria verdadeiro (a presunção é a da boa-fé);

b)em assim agindo, estar-se-ia, em última análise, negando a existência do princípio da fungibilidade;

c)esta atitude caracteriza ofensa ao direito constitucional do devido processo legal, pois que se estaria subtraindo do recorrente o direito, que pelas regras processuais ele possui, de, por exemplo, interpor o recurso de apelação em quinze dias."

4.5. ERRO GROSSEIRO

Numa forma simplista pode-se afirmar que os provimentos judiciais podem ser expressos por decisões interlocutórias, nas quais o magistrado resolve questão incidente (atacáveis por meio de agravo); sentenças, nas quais se põe termo ao processo, decidindo-se ou não o mérito da causa (atacáveis por apelação), e acórdãos, decisões preferidas pelo colegiado (atacáveis por recurso ordinário, especial ou extraordinário) [25].

Logo, se a questão decidida é incidente, deve-se utilizar o agravo. Se foi colocado termo ao processo, utilize-se a apelação. Em se tratando de acórdão, veja-se os recursos cabíveis aos Tribunais Superiores, estando o RESP e o REXT disciplinados claramente pela Constituição Federal.

"O fator determinante na conceituação do pronunciamento judicial é o conteúdo e a finalidade a que se presta, e não a forma ou a denominação que o juiz lhe emprestou ao proferi-lo" [26]. No mesmo sentido LIEBMAN, esclarecendo que "Según la jurisprudencia de la Corte de casación, ''la sustancia debe prevalecer sobre la forma'' y la providencia debe ser considerada a los efectos de la impugnación según su contenido, cualquiera sea la forma y la denominatión que el juez le haya dado."

No entanto, na prática surgiram e surgem dúvidas quanto a classificação de provimentos judiciais e a também quanto utilização dos recursos existentes, e na esteira da existência ou não dessas dúvidas é que se verifica o erro grosseiro. Como um dos vários exemplos de dúvida verificada na interpretação e aplicação do CPC cita-se a situação quanto ao recurso cabível contra a decisão sobre o pedido de remição de bens na execução. O artigo 790 CPC alude à sentença, enquanto o artigo 558 do CPC faz referência ao agravo [27].

Diante dessa realidade, evoluiu a doutrina na concepção do princípio da fungibilidade, com destaque aos estudos de NELSON NERY JÚNIOR, que verificando a ausência de disposição expressa sobre as possibilidades de efetiva aplicação do princípio, sustentou que, além da ausência de má-fé, para que o erro fosse considerado escusável (e não grosseiro) deveria existir dúvida objetiva sobre qual o recurso cabível.

Segundo seu ensinamento, a dúvida objetiva pode ser de três ordens:

- o próprio código designa uma decisão interlocutória como sentença ou vice-versa, fazendo-a obscura ou impropriamente [28];

- a doutrina e/ou a jurisprudência divergem quanto à classificação de determinados atos judiciais e, conseqüentemente, quanto à adequação do respectivo recurso para atacá-lo;

- o juiz profere um pronunciamento em lugar de outro.

Para TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER [29], verifica-se erro grosseiro quando: a) a parte faz uso de um recurso, no lugar de outro, afrontando flagrantemente os princípios básicos da sistemática recursal; b) a jurisprudência e a doutrina são unânimes quanto ao cabimento de outro recurso, que não o interposto.

4.6. SUBSISTÊNCIA DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE

Considerando que dúvidas ainda podem ser verificadas no atual sistema processual, inclusive com outras variantes surgidas mais recentemente, que a Constituição Federal objetiva assegurar de forma efetiva o exercício dos direitos nela consagrados, que enquanto derivado de tradição e de decisões judiciais o princípio da fungibilidade é implícito, deve continuar a ser aplicado no direito processual civil, atendidos os requisitos para sua observância.

Justifica-se também a sobrevivência do princípio da fungibilidade porque presume-se que o conhecimento jurídico da doutrina e da jurisprudência seja superior ao das partes, e se nessas esferas pode existir e há dúvidas quanto ao instrumento adequado para buscar a tutela jurisdicional em determinados casos, não se pode exigir perfeição da parte, prejudicando-a pelo não conhecimento do instrumento eleito. Como bem questiona NELSON NERY JÚNIOR, "(...) porque não teria o recorrente o direito de enganar-se, em havendo dúvida objetiva quanto ao recurso a ser interposto?".

Exemplo de dúvida objetiva recentemente verificada no sistema jurídico foi a questão sobre qual o recurso cabível contra decisão que deferia ou indeferia medida liminar em mandado de segurança, se agravo de instrumento ou novo mandado de segurança contra ato do juiz.

De acordo com as disposições do Código de Processo Civil, alterado pela Lei n º 9.139, de 30 de novembro de 1995, contra decisões interlocutórias cabe agravo (artigo 522).

Sendo o indeferimento de medida liminar em mandado de segurança uma decisão tipicamente interlocutória, que não põe fim ao processo e decide questão incidente, sustentou-se que o recurso cabível à parte lesada pela decisão que denegou a liminar era efetivamente o agravo de instrumento. Os tribunais demonstraram entendimento de que a Lei nº 9.139/95 teve o objetivo de tornar a prestação jurisdicional mais célere e acabou por substituir a prática existente anteriormente, de se impetrar novo mandado de segurança contra o ato do juiz que não concedesse a liminar. Exemplifica-se esse entendimento pelo seguinte julgado:

"MANDADO DE SEGURANÇA PARA PLEITO DE LIMINAR E AGRAVO DE INSTRUMENTO – ALTERAÇÕES NO CPC (...)

De sua parte, a lei 9.139/95, em vigor a partir de 31 de janeiro do corrente ano, deu nova feição ao agravo de instrumento, permitindo que o relator lhe dê efeito suspensivo, tornando-o, assim, recurso hábil para a correção pronta de decisões judiciais.

Discorrendo sobre a nova redação do art. 558 do Código de Processo Civil, escreveu Sérgio Bermudes (A Reforma do Código de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 94):

A norma, que agora se aprecia, tem a vantagem de tornar o mandado de segurança meio inadequado para a impugnação das decisões judiciais das quais couber agravo de instrumento. Se, havendo interposto o agravo, o agravante impetrar segurança, em vez de se valer dos arts. 527, II, e 558, por certo será julgado carecedor dela pela falte de interesse processual, decorrente da idoneidade do meio. (...).

Tendo em vista que a decisão hostilizada sujeita-se a agravo de instrumento, recurso ao qual, segundo a nova legislação, pode ser dado efeito suspensivo, quer paralisando a eficácia do ato, quer antecipando a pretendida tutela, não é cabível mandado de segurança.

Ante o exposto, com fundamento no que dispõe o art. 5º, II, c.c. o art. 8º da Lei nº 1.533/51 e 33, XIII, do Regimento Interno deste Tribunal, nego seguimento a este mandado de segurança, determinando o arquivamento dos autos."

(Mandado de Segurança nº 96.03.012938-0, Juiz Relator: Homar Cais, do TRF, 3ª Região, São Paulo, 12 de fevereiro de 1996 – D.J.U. 2 DE 23.2.96, P. 9055)

Embora não se tenha exigido muito tempo para que esse posicionamento fosse pacificado pela doutrina e pela jurisprudência, entendo que durante a fase de estudos e discussão deveriam ser aceitos ambos os meios para atacar a decisão interlocutória, o que configura aplicação da fungibilidade ainda que o princípio não fosse invocado expressamente pela parte o pelo judiciário, com vistas a entregar de forma eficiente a tutela pretendida e assegurar o direito da parte interessada.

Por fim, note-se que o Supremo Tribunal Federal - STF reconhece a subsistência do princípio da fungibilidade, mesmo ausente a disposição expressa no atual Código de Processo Civil: "O principio da fungibilidade subsiste no sistema do Código de Processo Civil de 1973, a despeito de não haver este reproduzido norma semelhante a do art. 810 do Estatuto Processual de 1939" (RE 99033-SP, RE 97256-SP, RE , RE 93664-RJ, RE 92314).

4.7. NOVAS APLICAÇÕES DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE

Até o presente momento foi traçado um perfil do princípio da fungibilidade, destacando-se que seu estudo veio ocorrendo, primordialmente, no campo recursal.

No entanto, além do sistema recursal a parte pode se valer de outros meios para obter a tutela jurisdicional sobre o seu direito (ou ainda, o resultado pretendido). Considerando-se o processo como instrumento para a realização da justiça, opções foram criadas para obter o mesmo resultado, podendo o interessado utilizar-se de mais de um caminho para tanto.

Despretensiosamente, penso que essa afirmação pode ser atualmente tida como correta, ao contrário do corolário "não há dois caminhos para levar-se a um mesmo lugar", pois são vários os instrumentos atualmente colocados à disposição da sociedade para a tutela dos seus direitos. Nota-se a ampliação das questões relacionadas ao direito processual civil pela quantidade de leis dessa natureza, que formam as chamadas "Reformas ao Código de Processo Civil".

Ademais, a criatividade no mundo jurídico é fato, tamanho o número de diferentes questões levadas ao judiciário pelos operadores do direito.

De fato, com a utilização do recurso há uma ampliação da relação processual em andamento, mas conforme já ensinava FREDERICO MARQUES, a lei processual prevê determinadas ações, também destinadas a pedir a revisão de atos decisórios, como a ação rescisória e o mandado de segurança contra atos judiciais, que impõem o início de outra relação processual.

Quanto ao mandado de segurança, veja-se o precedente criado pelo Supremo Tribunal Federal (MS 24159), que numa nova interpretação conheceu do remédio impetrado contra ato de Ministro da Corte, o que até então não era aceito pela jurisprudência [30].

Relativamente à ação rescisória, meio hábil para rescindir, nas hipóteses indicadas no artigo 485 do CPC [31], sentenças de mérito transitadas em julgado, a doutrina e a jurisprudência vêm se inclinando, ao meu ver de forma correta, a considerar que não se faz necessário o seu ajuizamento nos casos em que a sentença rescidenda for juridicamente inexistente (que padece de vício que a desconstitui enquanto sentença. Por exemplo: ausência de ordem que coloque termo ao processo; prolatadas em processos com vícios atingidos pela nulidade como a falta de citação ou de litisconsorte necessário).

Nesse caso tem-se defendido a possibilidade de invocar esse vício nos próprios autos, lançando mão da teoria da aparência, pois o ato judicial aparentava em um primeiro momento ser uma sentença transitada em julgado, mas diante do vício que a desconstitui, nenhuma vantagem se verifica em não apreciar a questão nos próprios autos, forçando a parte a ingressar com nova ação.

Tratando-se de ingressar com nova ação para rever atos judiciais, é de se verificar que as reformas do CPC têm, de fato, primado pela redução do número de processos nos órgãos do Poder Judiciário, e até mesmo de recursos [32]. Embora não se tenha atingido esse objetivo no caso do agravo de instrumento (eis que a interposição desse recurso aumentou sobremaneira o número de processos distribuídos nos Tribunais após a modificação promovida em 1995), creio que a possibilidade de se antecipar os efeitos da tutela teve esse objetivo.

Veja-se a nova redação ao artigo 273 dada pela Lei nº 10.444/2002, acrescentando o parágrafo 6º, permitindo a concessão da tutela antecipada quando um ou mais pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. Acredito que diante de decisão nesse sentido pode o beneficiado requerer desde logo, nos próprios autos, a execução do julgado na parte incontroversa, dando-se prosseguimento ao feito na parte litigiosa sem que seja necessário lançar mão de processo de execução provisória.

Da mesma forma o parágrafo 7º, acrescentado ao artigo 273 pela mesma lei acima mencionada, permitindo ao juiz conceder, no processo principal, providência de natureza cautelar quando presentes os respectivos pressupostos.

A meu ver o parágrafo 7º poderia ser dispensado, pois há de fato fungibilidade entre medidas cautelares e antecipatórias de tutela. Na antecipação de tutela do inciso I (quando haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação) estão imbutidos os requisitos da medida cautelar, em especial o periculum in mora. Só que, com a possibilidade de ser concedida a antecipação dos efeitos da tutela, dispensa-se a parte de ingressar com nova ação (medida cautelar incidental), bem como evita-se que o judiciário acumule autos de processo, podendo a questão ser resolvida, de forma efetiva e eficiente, nos autos principais.

Infelizmente, esse objetivo não tem sido alcançado. Lembrado caso recentemente ocorrido perante a Justiça Federal em São Paulo (SP), foi requerida a antecipação dos efeitos da tutela para o fim de autorizar a compensação de créditos de certa empresa, a título de empréstimo compulsório Eletrobrás, com débitos vincendos de energia elétrica frente à sua fornecedora, conforme previsão do Decreto Lei nº 1.512/76. Pretendia a empresa a devolução (pedido de natureza civil) de valores que pagou a título de empréstimo compulsório (natureza tributária), com a devida correção monetária e juros. Como o tributo foi pago entre 1977 e 1993 não há mais que se discutir qualquer elemento relativo àquela obrigação (tributária); nem a legitimidade da imposição, nem sua alíquota, nem sua base calculada, nem qualquer aspecto relativo ao lançamento, até porque, efetuado o recolhimento do compulsório, foi satisfeita a obrigação pelo pagamento, o que acarretou sua extinção nos termos do artigo 156 do Código Tributário Nacional.

No entanto, mesmo diante da natureza civil da compensação requerida [33], da comprovação da iminência de falência da empresa e da maciça jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo o direito à devolução dos valores pleiteados, a antecipação dos efeitos da tutela foi indeferida ao argumento de que as súmulas 212 e 213 do Superior Tribunal de Justiça e 45 do TRF da 4ª. Região vedam a concessão de liminar para compensação de créditos tributários.

Esclarecido nos autos que não se trata de pedido de compensação de valores com tributos vincendos, mas sim de devolução de valores na forma de compensação civil, e que portanto não se aplicam as invocadas súmulas, a decisão não foi reconsiderada ao argumento de haveria "sério risco de irreversibilidade do provimento".

Ora, nesse caso a irreversibilidade está no fato de não ser concedida a tutela (o que causará a falência da empresa). Em função do indeferimento da antecipação, foi necessário ingressar com medida cautelar, para assegurar a eficácia do processo principal (pois após a falência da empresa de nada adiantará o deferimento do pedido), o que, ao meu ver, seria desnecessário pela própria redação original do artigo 273 do CPC, agora explicitado pelo parágrafo 7º.

Assim, a fungibilidade existente, a meu ver, entre a utilização da tutela antecipada e de medidas cautelares, não foi aplicada no caso concreto.

Ainda sobre a antecipação dos efeitos da tutela, outra dúvida surgida recentemente e que vem sendo discutida é estabelecer qual o recurso cabível quando a mesma for concedida na sentença e não em decisão interlocutória.

Defende a doutrina que se a tutela antecipada pode ser concedida em decisão interlocutória, tipicamente proferida em sede de cognição sumária, nada impede sua concessão na sentença, momento em que o juiz se vale de cognição exauriente.

O problema que se verificava é que, se concedida em decisão interlocutória, e não suspensa em sede de agravo pelo Tribunal competente, surtia efeitos imediatamente. Se concedida na sentença, decisão que é apelável, diante do efeito suspensivo desse recurso somente poderia ser levada a efeito depois de confirmada pelo Tribunal quando do julgamento da apelação.

Assim discutiu-se sobre a fungibilidade de decisões. PAULO AFONSO BRUM VAZ e LUIZ GUILHERME MARINONI sugeriram que fossem proferidas duas decisões ainda que no mesmo momento, uma concedendo a tutela antecipada e uma sentença, podendo a parte utilizar-se dos dois recursos (agravo contra a antencipação de tutela e apelação contra a sentença).

Não me parece que obrigar o juiz a proferir duas decisões atenda os princípios processuais, mormente o da economia processual e, porque não invocar também o da unidade dos atos [34].

FERNANDO ZENI e EDGARD ANTONIO LIPPMANN JR sustentaram a natureza híbrida da decisão, sugerindo a possibilidade do cabimento simultâneo dos dois recursos (agravo e apelação) contra a mesma decisão. Tal sugestão no entanto não prima pela redução dos recursos cabíveis e, possivelmente, ambos os recursos seriam distribuídos ao mesmo relator, que os decidiria de uma só vez.

A fungibilidade de decisões portanto aqui se evidencia, pois sugeriu-se que num mesmo pronunciamento judicial seja aproveitada a cognição exauriente para sentenciar e também antecipar os efeitos da tutela.

A celeuma foi praticamente resolvida com a inclusão do inciso VII ao artigo 520 do CPC, estabelecendo que será recebida apenas no efeito devolutivo a apelação contra sentença que confirmar a antecipação dos efeitos da tutela.

Bem observado por LUIZ RODRIGUES WAMBIER e TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER [35] que se o juiz desejar antecipar os efeitos da tutela na sentença e receber eventual apelação apenas no efeito devolutivo, deve tornar essa decisão expressa, recomendando-se interpor embargos de declaração se houver omissão quando a esse aspecto.

Há ainda outras situações recentes, criadas pelas "Reformas ao Código de Processo Civil", que podem ser enquadradas como novas feições do princípio da fungibilidade.

Concordo que pode haver substituição (fungibilidade) de ações ("meios"), decisões, e também de recursos para se obter a tutela jurisdicional, de forma que se atenda à função do processo, sucintamente descrita no início deste breve ensaio.

Pode ainda haver variantes da aplicação do princípio da fungibilidade sem que seja necessário verificar a presença/ausência de má-fé ou do erro grosseiro. Em meu entendimento é o que ocorre com a conversão do agravo de instrumento interposto contra a decisão que não admite recurso especial e/ou extraordinário, autorizada pelo artigo 544, parágrafos 3º e 4º, do CPC [36]. Permitida essa troca/substituição, entendo que há fungibilidade e observância à economia processual, sendo que para essa situação não se cogitou na legislação verificar má-fé ou erro grosseiro. Simplesmente aplica-se a fungibilidade se outro requisito estiver presente, qual seja, se no agravo estiverem contidos todos os elementos necessários ao julgamento do mérito.

Defendo que essa orientação deve ser estendida, sempre que possível, a exemplo do conhecimento de embargos declaratórios como agravo regimental, ou vice-versa:

"PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROTOCOLO. CARIMBO ILEGÍVEL. IMPOSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO DA TEMPESTIVIDADE DO RECURSO ESPECIAL.
PRECLUSÃO. EMBARGOS DECLARATÓRIOS RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL.

1. Em homenagem ao princípio da fungibilidade recursal, os declaratórios opostos com o objetivo de obter a reconsideração de provimento monocrático, sem indicação de quaisquer dos vícios elencados no artigo 535 do Código de Processo Civil, devem ser recebidos como agravo regimental.

2. Pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, em sede de agravo de instrumento, a tempestividade do recurso especial é aferida pela data constante da cópia do respectivo protocolo, cópia que deve se mostrar absolutamente legível.

3. É de responsabilidade do agravante a fiscalização da correta formação do instrumento, não se admitindo sua regularização por ocasião do manejo de agravo regimental.

4. Precedentes.

5. Agravo regimental a que se nega provimento."

(STJ. EDAG 393539/SP. 6ª Turma. Relator Min. PAULO GALLOTTI. Unânime. DJ 05/08/2002, P. 00425).

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO - RECURSO EXTRAORDINÁRIO - ALEGADA VIOLAÇÃO AOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS INSCRITOS NOS ARTS. 5º, XXIII, XXIV, XXXVI E 93, IX - AUSÊNCIA DE OFENSA DIRETA À CONSTITUIÇÃO - CONTENCIOSO DE MERA LEGALIDADE - RECURSO IMPROVIDO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO, QUANDO OPOSTOS A DECISÃO MONOCRÁTICA EMANADA DE JUIZ DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, SÃO CONHECIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por entender incabíveis embargos de declaração contra decisões singulares proferidas por Juiz desta Corte, deles tem conhecido, quando opostos a tais atos decisórios, como recurso de agravo. Precedentes. - A situação de ofensa meramente reflexa ao texto constitucional, quando ocorrente, não basta, só por si, para viabilizar o acesso à via recursal extraordinária. Precedentes. - A ausência de efetiva apreciação do litígio constitucional, por parte do Tribunal de que emanou o acórdão impugnado, não autoriza - ante a falta de prequestionamento explícito da controvérsia jurídica - a utilização do recurso extraordinário, ainda que se trate de matéria de natureza penal. Precedentes."

(STF. AGED-257600 / SP. 2ª Turma. Maioria. Relator Min. CELSO DE MELLO. DJ DATA-29-06-01 PP-00053.)

"Processual Civil. Agravo Regimental Contra Acórdão (art. 258, RISTJ). Descabimento. Princípios da Fungibilidade e da Instrumentalidade. Admissão E Conhecimento Como Embargos Declaratórios (art. 535, I e II, CPC). Tarifa De Energia Elétrica. Congelamento. Decretos-Leis nºs 2.283/86 e 2.284/86. Portarias 38/86, 45/86 e 153/86. Sucumbência Recíproca. Honorários Advocatícios (arts. 20 e 21, CPC). 1. Descabe agravo regimental contra acórdão. 2. Diante das peculiaridade do caso e divisada a contradição, sob as tendas da fungibilidade e da instrumentalidade do processo, o agravo pode ser conhecido como embargos declaratórios (art. 535, I, CPC). 3. Ocorrente a sucumbência recíproca, as partes suportarão proporcionalmente a obrigação de pagar honorários advocatícios (art. 20 e 21, CPC)."

(STJ. EERESP 222318. 1ª Turma. DJ DATA:19/11/2001 PÁGINA:236 Relator(a) MILTON LUIZ PEREIRA. Unânime)

Com relação às medidas cautelares também se verifica a presença da fungibilidade, eis que tem se sedimentado na doutrina [37] o entendimento de que o juiz, diante de um pedido de medida cautelar inominada, pode conceder medida nominada e vice-versa, pois frente aos pressupostos para a sua concessão, não se poderia admitir o não conhecimento do pedido, ou pior, o seu indeferimento, invocando questões de formalidade.

Feliz a conclusão de TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER para esclarecer que "razões de ordem formal não devem obstar que a parte obtenha a seu favor provimento cujo sentido e função sejam o de gerar condições à plena eficácia da providência jurisdicional pleiteada ou a final, ou em outro processo, seja de conhecimento, seja de execução."

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Sobre o autor
Regiane Binhara Esturilio

advogada, bacharel em administração de empresas, mestranda em Direito Econômico e Social pela PUC-PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTURILIO, Regiane Binhara. Breves considerações sobre o princípio da fungibilidade, suas variantes e novas aplicações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 331, 3 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5290. Acesso em: 29 mar. 2024.

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