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O Projeto de Código Civil: as críticas da OAB estão atrasadas

01/03/2000 às 00:00
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São indevidas as críticas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Projeto de Código Civil, especialmente em questões de Direito de Família.

Em elaboração há mais de três décadas, somente agora, quando o Projeto de Código Civil depende apenas do pronunciamento da Câmara dos Deputados sobre as emendas aprovadas pelo Senado Federal, é que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se lembra de propor a rejeição do projeto com base nas mais incabíveis alegações.


Em primeiro lugar, não faltou breve alusão a duas ordens de argumentos já sobejamente contestados por mim, seja neste jornal, seja em meu recente livro O Projeto de Código Civil, cuja segunda edição foi publicada, no fim do ano passado, pela Editora Saraiva. Refiro-me a uma suposta época de "decodificação", na qual se daria preferência a legislações esparsas, como o Código do Consumidor, ou o Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme exemplos lembrados, quando a Holanda acaba de promulgar o seu novo Código Civil e o Japão se apresta a fazê-lo, após uma série de recentes códigos civis latino-americanos... A outra argüição se refere à pretensa "inatualidade" do projeto, por não cuidar da concepção "in vitro", etc., quando tal matéria exige, por sua natureza, legislação especial, abrangendo, além de normas de direito civil, regras pertinentes à engenharia genética, bem como precauções de caráter administrativo, como tem sido reconhecido em toda parte do mundo. Aliás, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América - países do common law - nem mesmo existem códigos civil, e é neles que mais avançada se acha a legislação sobre geração extra-uterina...

Mas a oposição da OAB ao projeto se funda especialmente em matéria de Direito de Família, com asseverações que refletem tão-somente pontos de vista subjetivos dos intérpretes, com base em antiquada hermenêutica literal, sendo as objeções superáveis por meio da dominante interpretação estrutural e concreta.

A precipitação com que se pronunciou a OAB é tão evidente que nem sequer houve cuidado na escolha do texto a ser lido e criticado - após tantos anos de silêncio! - não obstante a cautela que teve o Senado Federal de fazer duas publicações oficiais, em 1997, do projeto na íntegra, abrangendo as emendas por ele introduzidas, e discriminando-as em separado. O certo é que as citações dos artigos, objeto de inopinada condenação, não correspondem à numeração do projeto aprovado pela Câmara Alta, bastando salientar que é criticado, por exemplo, o § 4º do art. 1.539 que não tem parágrafo nenhum... Conhecedor da matéria, foi-me possível localizar as objeções tardias e verificar sua total insubsistência.

No fundo, tudo se reduz ao equívoco de pensar que, pelo fato de não haver mais filhos "legítimos" - uma vez que a Constituição de 1988 igualou a todos eles -, o casamento tenha deixado de ser a união familiar por excelência. Para prová-lo basta lembrar que o § 3º do art. 226 da Carta Magna, ao reconhecer a união estável como entidade familiar, acentua que deve a lei facilitar sua conversão em casamento.

É óbvio, por outro lado, que, se o Projeto de Código Civil prevê a forma e o processo do casamento, se entende que este, como todo ato jurídico formal, pode ser comprovado mediante certidão do respectivo registro, tal como previsto no artigo 1.542 do projeto.

A maior parte das objeções é no sentido de que o Senado Federal não teria corrigido os dispositivos que consagram a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, o que a Constituição vigente repele. Essa aversão dos críticos ao emprego do substantivo legitimidade resulta da não compreensão de que o que a Carta Magna declara é que são igualmente legítimos tanto os filhos do casamento como os naturais, os adulterinos e os adotivos. É óbvio que todos os casos apontados pressupõem a satisfação das condições legais que lhes correspondem. Desse modo, não vejo por qual motivo deveria ser considerado inconstitucional o art. 1.550 (numeração correta), segundo o qual a anulação do casamento não obsta a legitimidade do filho concebido ou havido antes ou na constância dele, servindo esta norma como preceito extensível a outras espécies de filiação.

Por outro lado, é incompreensível que se critique o artigo 1.516 por referir-se somente à capacidade de a mulher casar aos 16 anos, silenciando quanto ao homem, pois, se naquele caso, há compreensíveis razões biológicas, no caso do homem prevalece a regra geral de 18 anos, que é, segundo o projeto, a idade da maioridade.

Quanto ao art. 1.535, que fixa o assento do livro do registro, silenciando sobre o nome a ser assinado pela mulher, é evidente que não estamos perante um numerus clausus, tanto mais que predomina cada vez mais a decisão da mulher de conservar seu nome de solteira. Seria absurdo que, não havendo referência a esse fato, fosse ele vedado...

Quanto à crítica às regras do casamento por procuração, basta verificar o que explica admiravelmente o saudoso mestre Clovis Couto e Silva, na Exposição de Motivos que dedicou ao assunto, mostrando a razão da solução adotada.


São de igual jaez as demais críticas, as quais de maneira alguma poderiam levar à inexorável conclusão da não aprovação do projeto pela Câmara dos Deputados, ao corte do tronco por falhas em poucos ramos... Ainda que as críticas fossem procedentes, compreende-se que a solução natural seria, não a rejeição global do projeto, mas a correção de alguma lacuna porventura existente mediante projeto de lei, mesmo porque o novo Código Cível só entraria em vigor após um ano, permitindo longa vacatio legis para eventuais correções ou complementos.

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O que não se compreende, absolutamente, é que se pretenda desprezar o monumental trabalho levado a termo pelos maiores juristas da sociedade civil e do Congresso Nacional.

Eis aí a oportunidade que teria a OAB de sanar a omissão de tantos anos, com a elaboração de regras complementares, porventura indispensáveis.

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Sobre o autor
Miguel Reale

jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, presidente da comissão elaboradora do Código Civil de 2002 (in memoriam)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REALE, Miguel. O Projeto de Código Civil: as críticas da OAB estão atrasadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1218, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/510. Acesso em: 18 abr. 2024.

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Texto publicado anteriormente em O Estado de S.Paulo, em 22/01/2000, reproduzido com a permissão do autor

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