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Bioética e Direito:

procriação artificial, dilemas ético-jurídicos

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01/11/2001 às 01:00
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1.ASPECTOS GERAIS:

Os avanços recentes da biotecnologia trouxeram enormes benefícios à humanidade uma vez que praticamente permitem o controle da vida, desde sua concepção, conservação, correção e fim. Dentre tais progressos salientam-se as práticas de procriação artificial, destacando-se a inseminação artificial e a fecundação in vitro.

Contudo, a modernização das práticas de reprodução assistida, decorrente do progresso biotecnológico, tem afetado a família, a paternidade, a maternidade, o sentido da concepção humana e a intangibilidade dos seres humanos.

Nesse contexto surge a Bioética que pode ser conceituada como o "estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga, nas áreas das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular"[1]. A bioética nasceu da "necessidade de um controle da utilização crescente e invasora de tecnologias cada vez mais numerosas e afinadas nas práticas biomédicas"[2].

Todavia, uma vez que esses progressos biotecnológicos trazem implicações na sociedade, vê-se que é necessária a presença do Direito ao lado da Bioética para que haja a defesa das pessoas perante possíveis abusos.

Com efeito, os avanços biotecnológicos precisam encontrar limites para que não violem os direitos fundamentais do homem, e para tanto precisam ser regulados, já que nossa legislação ainda não contempla nada acerca do tema.

Diante disso, urge que o Direito normatize tais práticas buscando fundamentos na Bioética, que por tratar-se de ciência interdisciplinar deverá discutir esses fundamentos com vários ramos, como a psicologia, a religião, a medicina, enfim, a sociedade como um todo, tendo sempre como base a moral e a ética.

Tendo em vista esses aspectos é que pretendemos neste trabalho desenvolver alguns dos polêmicos conflitos que surgem com as práticas de Procriação Assistida com o intuito de propor bases para uma futura normatização, para tanto, faz-se necessário apresentar inicialmente alguns esclarecimentos técnico-científicos e conhecimentos gerais e históricos à respeito da Reprodução Artificial.

A Procriação Artificial, também chamada de Reprodução Medicamente Assistida, é um conjunto de técnicas através das quais se permite a reprodução sem sexo, ao contrário da contracepção que permite a prática sexual sem o risco da reprodução[3].

Dentre as técnicas de Reprodução Assistida, tratar-se-á das chamadas Inseminação Artificial e Fecundação in vitro:

a) A inseminação artificial é uma técnica de reprodução assistida através da qual os espermatozóides, previamente recolhidos e tratados, são transferidos para o interior do aparelho genital feminino por meio de uma cânula;

b) A fecundação in vitro é uma técnica de reprodução assistida através da qual se dá a fecundação do óvulo in vitro, ou seja, os gametas masculino e feminino são previamente recolhidos e colocados em contato in vitro. O embrião resultante é transferido para o útero ou para as trompas.

Pessini e Barchifontaine [4] distinguem dizendo que "nas técnicas de procriação assistida, os espermatozóides e óvulos podem provir do casal. Nesse caso a Reprodução Medicamente Assistida chama-se homóloga. Se, pelo contrário, um ou ambos tipos de gametas do casal não são viáveis se recorre a um doador de espermatozóides e/ou de óvulos, fora do casal, denomina-se heteróloga."

Tais procedimentos, tanto na sua forma homóloga ou heteróloga, geram conflitos no mundo jurídico. Os problemas daí decorrentes vêm afetando a sociedade e desafiando o Direito na tentativa de resolver tais conflitos.

No presente trabalho desenvolver-se-á as situações conflitantes que brotam da Procriação Artificial na sua forma heteróloga, pois, como disse Eser, "a doação de gametas não é idêntica à doação de sangue: o sangue é totalmente absorvido pelo corpo de um terceiro, enquanto que o gameta, além de ser absorvido, perpetua a pessoa do doador na criança"[5].

Os avanços biotécnológicos vêm permitindo, através dos tempos, que o homem domine a sua própria vida, sobretudo no que concerne à reprodução.

O surgimento da pílula anticoncepcional trouxe maior liberdade sexual às pessoas, à medida que com ela evita-se uma procriação indesejada, do mesmo modo que essa forma de contracepção serviu como uma poderosa arma no controle da natalidade. Por outro lado, pessoas que, por um motivo ou outro, não podiam ter filhos, viram-se diante da possibilidade de procriar com o surgimento das técnicas de reprodução artificial.

A contribuição trazida à reprodução humana, no que diz respeito à impossibilidade de ter filhos, é muito mais notório, sobretudo, porque a transmissão de vida constitui a mais sublime capacidade humana, à medida que trás enormes mudanças sociais, jurídicas e psicológicas na vida de quem procria.

Assim sendo, nada mais natural que o homem busque vencer todos os obstáculos que lhe impedem de gerar vida [6].

Há notícias que desde meados do séc. XVIII já haviam experiências de inseminação artificial em peixes [7].

Em 1799 obteve-se êxito numa inseminação artificial humana, mas a primeira inseminação assistida heteróloga (com esperma doado por um terceiro estranho ao casal) foi em 1884. Em 1890, a inseminação artificial já era utilizada em larga escala.

Quanto à fecundação in vitro, seu pleno êxito foi obtido em 1978, com o nascimento do primeiro bebê de proveta do mundo, na Inglaterra.

Apesar da inseminação artificial já ser usada bem antes de 1978, foi o nascimento do primeiro bebê de proveta, amplamente divulgado pelos meios de comunicação, que chamou a atenção do mundo para as práticas de procriação assistida.

Foi, pois, à partir de 1978 que as práticas biomédicas na área de reprodução assistida passaram a fazer parte do quotidiano das pessoas e, diante disso, a população teve conhecimento dos grandes avanços biotécnológicos nesse campo como o congelamento de espermas, embriões, as práticas heterólogas de reprodução assistida, procriação artificial entre homossexuais, pessoas solteiras e pós-morte.

Esses avanços que surgiram com o progresso da procriação artificial, geram problemas jurídicos à medida que vêm sendo utilizados em larga escala, e isso leva a um grande debate social acerca das soluções a serem dadas.


2. A ESTERILIDADE E O DIREITO À PROCRIAÇÃO

Frente às técnicas de reprodução artificial, faz-se necessário questionar-se à respeito do significado da esterilidade para a pessoa humana e também sobre a existência ou não de um direito a procriar.

Desde os mais remotos tempos a humanidade coloca a esterilidade e a fecundidade em lados opostos, atribuindo à esta a idéia de bem e àquela a idéia de mal. As primeiras manifestações de arte da história traziam a mulher grávida, mostrando o quão importante e belo é para a espécie humana a reprodução. Equiparava-se a mulher fecunda à terra por ser capaz de fazer brotar vida de si mesma; no entanto, a mulher estéril era tida como um ser amaldiçoado e que, portanto, deveria ser eliminada da sociedade.

O problema da esterilidade, até então, era tido como algo feminino, contudo Johann Ham afirma no séc. XVII que a infertilidade decorre, muitas vezes, da escassez de espermatozóides; à partir de então passou-se a considerar que trata-se de um problema também de ordem masculina [8].

Essa discriminação pela pessoa estéril, que percebe-se nos primórdios da humanidade, refletiu ao longo da evolução humana e ainda hoje sente-se seus raios na sociedade moderna. O casal que depara-se com o problema da infertilidade enfrenta uma angústia muito grande por não poder corresponder aquilo que o grupo social espera de um homem e de uma mulher: a reprodução.

A possibilidade do sexo sem o risco da procriação trazida pelas pílulas anticoncepcionais não aboliu a necessidade da reprodução. O que se espera de um casal é justamente a criação de uma família e, embora o conceito de família venha sofrendo algumas notáveis modificações na atual sociedade, ainda prevalece o entendimento de que ela surge com a chegada do filho.

Tendo em vista esses aspectos, percebe-se que a esterilidade atinge o ser humano não apenas na sua vida íntima, mas trás conseqüências no seu convívio familiar, na sua relação com a sociedade como um todo. Assim, é extremamente compreensível que a pessoa estéril busque todos os meios possíveis para a superação dessa sua incapacidade reprodutiva na tentativa não apenas de resolver a falta do tão almejado filho, mas sobretudo para restabelecer-se psicologica, sentimental e socialmente.

Analisando a situação pelo âmbito jurídico, tem-se entendido que há um direito à procriar. Os defensores dessa posição apontam como base legal:

a) a Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde disciplina-se o direito à igualdade e à dignidade da pessoa humana, prevendo ainda o direito de fundar uma família, nos artigos III, VII e XVI, 1;

b) a Constituição Brasileira de 1988, donde extrai-se o direito à procriação das normas de inviolabilidade do direito à vida (caput do art. 5º), do incentivo e da liberdade de expressão à pesquisa e ao desenvolvimento científico (art. 218), da liberdade de consciência e crença ( inciso VI do art. 5º) e ainda da previsão do planejamento familiar como livre decisão do casal ( §7º do art. 226).

Conforme já visto, a família surge com o nascimento do filho; a própria Constituição Federal prevê expressamente que também se considera entidade familiar a "comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes"[9], donde percebe-se a importância que a sociedade dá à filiação.

A pessoa estéril pode vir a sentir-se desigual às demais pessoas do convívio social não pelo fato de ser incapaz de conceber, mas sim por não poder escolher entre ter ou não ter filhos.

Tendo em vista que a Constituição Federal Brasileira prevê que o Estado:

a) promova e incentive o desenvolvimento científico, a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico (artigo 218);

b) proteja a família (caput do artigo 226);

c) propicie recursos educacionais e científicos para o planejamento familiar (§7º do artigo 226);

Assim, não teria lógica a proibição de procriar através das técnicas de reprodução assistida, uma vez que decorrem de avanços tecnicocientíficos e garantem o surgimento de uma família cujos pais sentem-se plenamente satisfeitos com a chegada do filho, o que proporciona à criança crescer num ambiente familiar sadio. O Estado não pode negar à suas pessoas que se beneficiem dos avanços advindos de áreas que ele mesmo dá especial proteção.

Não bastasse as previsões legais, tomando-se como base os princípios da legalidade e da anterioridade, vigentes em nosso sistema jurídico, conclui-se que a procriação artificial é de fato uma atividade lícita, pois no nosso ordenamento tudo o que não é proibido à princpio é permitido, assim, não havendo uma proibição legal expressa e específica nem uma tipificação de crime, são válidas as técnicas de procriação artificial na tentativa de solucionar a infertilidade humana.

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3. FORMA HETERÓLOGA DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA E CONFLITOS DECORRENTES

Conforme já visto, a reprodução medicamente assistida diz-se heteróloga quando o espermatozóide ou o óvulo utilizado provêm de um doador estranho ao casal; nesses casos está se falando na chamada doação de gametas.

A prática da doação de gametas é uma atividade lícita e válida desde que não tenha fim lucrativo ou comercial[10]. Assim, a gratuidade é característica fundamental da doação de gametas.

Além da Constituição Federal e da Resolução do Conselho Federal de Medicina, Oliveira e Borges[11] acrescentam:

Pode-se falar ainda no princípio geral da boa-fé como outro

justificador da gratuidade, visto que a venda geraria um comércio

imoral, calcado na dor das pessoas que não podem ter filhos e

certamente representaria outro obstáculo ao tratamento que, pela

complexidade das técnicas, normalmente apresenta altos custos.

Não obstante a proibição constitucional da comercialização, não há lei que determine a sanção penal para a violação desta regra. Como em nosso ordenamento jurídico não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal, a violação da Constituição Federal será uma conduta ilícita gerando o dever de indenizar e a punição administrativa aos médicos, mas não terá conseqüências na esfera penal [12]. Por esse fato percebe-se o quão insuficiente é a legislação brasileira acerca do tema.

Outra característica da doação de gametas é o anonimato de doadores e receptores[13]. Esta medida visa proteger a criança de possíveis perturbações psicológicas, garantindo que nenhuma ligação afetiva ocorrerá entre a criança e seu pai biológico, visto que não haveria utilidade social alguma.

Essas práticas levam ao surgimento de conflitos no mundo jurídico, sobretudo no que diz respeito ao Direito de Família e as relações de filiação.

O nosso Código Civil, que data de 1916, distingue os filhos em legítimos e ilegítimos (artigos 331 à 367), porém a Constituição Federal de 1988 proscreveu tais denominações (§6º do artigo 227), proibindo designações discriminatórias referentes à filiação.

No que diz respeito a filiação, as pessoas sempre tiveram como certa a maternidade devido à gravidez e ao parto. Dessa forma a identidade da mãe era sempre conhecida e a do pai presumida, já que com relação à paternidade havia a possibilidade de se fazer uma constatação certa.

O Direito adotou as presunções de paternidade e de maternidade através do princípio do jurisconsulto romano Papiniano: "pater is est quem nuptiae demonstrant" ( é pai aquele que as núpcias indicam) e ainda "mater semper certa est" (a mãe é sempre certa). Nesse sentido escreveu Fachin[14]:

Diante da certeza da maternidade, o eixo do

estabelecimento da paternidade gira em torno da figura

da mãe: se estar for casada, opera a presunção pater is

est; se a mãe não for casada, a filiação paternal pode

ser estabelecida pelo reconhecimento voluntário ou por

investigação.

Entretanto o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana medicamente assistida colocam em dúvida a regra milenar: mater certa est, pater is est, uma vez que trazem à tona questionamentos quanto às relações daí decorrentes.

Nos casos de doações de gametas pergunta-se quem é a mãe: a que doou seu oócito para a fecundação, a que gestou ou a que encomendou a criança (nos casos da chamada "barriga de aluguel") e se propôs a educá-la? E ainda, quem é o pai: aquele que emprestou seu sêmen para a fecundação ou aquele que se propôs a cuidar da criança?

Deste contexto, brotam inúmeras questões como, por exemplo:

a)pode a mulher que "alugou" seu útero se negar a entregar a criança?

b)pode a mulher que se valeu de sêmen de um terceiro reclamar alimentos deste em relação à criança?

c)e o marido pode negar a paternidade da criança que sua esposa obteu mediante as técnicas de procriação artificial?

d)e o cedente do esperma poderá reclamar a paternidade?

e)a criança gerada pelos métodos artificiais heterólogos tem direito à informação da sua identidade genética?

Conforme já visto, mesmo a maternidade, que sempre foi tida como certa, foi colocada em dúvida com a possibilidade da Reprodução Humana Medicamente Assistida na forma heteróloga.

Dentro do problema da maternidade depara-se com a chamada "barriga de aluguel". A maternidade de empréstimo ocorre quando uma mulher dispõe-se a doar temporariamente seu útero para a obtenção de uma criança, a qual deverá ser entregue ao casal com o qual foi feito o contrato de "locação de útero".

Em alguns países, como a França, Suíça e Argentina, faz-se a distinção entre maternidade sub-rogada e a maternidade compartida. Há maternidade sub-rogada quando o embrião fecundado com os gametas de um casal é implantado no útero de uma mulher que gerará a criança e a entregará aos pais biológicos após a gestação; há maternidade compartida quando uma mulher é inseminada com o gameta masculino do casal contribuindo com seu óvulo para a fecundação e comprometendo-se a entregar a criança ao fim da gestação à esse casal [15].

E se nos casos de gestação de substituição a mulher "contratada" se negar a entregar o bebê ao casal que a contratou?

A primeira vez que a atenção do mundo se voltou à maternidade de substituição foi em 1988, para o caso Baby M.O casal Stern não podia ter filhos e, sendo assim, contrataram com a Sra. Whitehead e seu marido que ela seria inseminada com o sêmen do Sr. Stern e carregaria a criança resultante da inseminação, tendo que entregá-la ao fim da gravidez ao casal Stern. No entanto, após o nascimento da criança, a Sra. Whitehead manifestou o desejo de manter consigo a criança. O caso se passou nos EUA e a Suprema Corte de New Jersey decidiu que o bebê deveria ser entregue ao casal Stern, não tendo a Sra. Whitehead direito à visita. O juiz Sorkow sentenciou levando em consideração:

a validade do contrato de locação de útero feito entre o casal Stern e a Sra. Whitehead; o interesse em educar a criança em meio mais abastado e mais influente, ou seja, the child’s best interests ( o melhor interesse da criança)[16].

Não obstante o caso citado, na legislação comparada têm prevalecido o entendimento de que, em casos de conflito de maternidade, a mãe é a que dá a luz à criança, pois a maternidade é legalmente estabelecida pelo parto e não pela transmissão do patrimônio genético. E, sendo assim, incide a presunção de que o pai da criança é o marido da mulher que deu à luz ( pater is est).

No Brasil não há norma legal que regulamente os casos de conflitos de maternidade. O que encontramos aqui é somente a Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina que prevê em sua seção VII que as "doadoras temporárias de útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau"[17] e estabelece ainda que a "doação temporária de útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial"[18] donde conclui-se que a expressão "barriga de aluguel" muito usada no Brasil, não corresponde à veracidade da gestação de substituição.

Há um Projeto de Lei tramitando no Congresso Nacional[19], o qual prevê o direito de filiação aos beneficiários das técnicas de Reprodução Assistida, mas esse projeto ainda não foi aprovado e, portanto, nada há de legislação a respeito no Brasil.

O que convêm dizer é que, nesses casos de maternidade de empréstimo, as conseqüências psicológicas podem ser graves tanto para o bebê quanto para a mãe gestadora, pois é sabido que durante a gravidez ocorre um intenso processo de afeto e dependência entre mãe e filho. Essa relação não acaba com o nascimento, mas intensifica-se com a busca do bebê pelo olhar protetor de sua mãe. Todos esses aspectos devem ser levados em conta no momento de se legislar à respeito do tema, visando sempre o bem maior da criança.

Talvez tenham sido esses aspectos psicológicos que nortearam os elaboradores da Resolução nº1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, quando estabeleceram que "as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau"[20]. Olhando-se pelo lado psíquico, a quebra do vínculo surgido entre mãe gestadora e bebê durante a gravidez não seria tão intensa já que, pertencendo ambas as mães à mesma família, a criança teria sempre, de uma forma ou de outra, contato com as duas.

Considerando os conflitos psicológicos que surgem com a maternidade de empréstimo, acreditamos não ser essa ainda a melhor forma de resolver o problema da infertilidade feminina. Consideramos sim, que as pessoas estéreis têm direito a buscar a realização do desejo de ter um filho, mas desde que isso não cause dano a ninguém. A própria ciência caminha rumo ao fim das "barrigas de aluguel" com a chamada "gestação sem mãe", possível através do útero artificial.

O útero artificial está sendo desenvolvido no Japão, para a gestação de um cabrito. As experiências com embrião humano não estão longe de acontecer e será uma solução não somente à maternidade de substituição, mas também aos casos, cada vez mais freqüentes, de bebês prematuros. Entretanto, a possibilidade do uso do útero artificial por seres humanos exige ainda um longo processo. No entanto, apesar de não simpatizarmos com as barrigas de aluguel, acreditamos que ainda são a melhor saída para a solução da questão, tendo-se sempre que observar as exigências colocadas pela Resolução nº1.358/92 em sua seção VII, 1.

Com relação à paternidade a doutrina de direito comparado entende, de um modo geral, que não é permitido ao marido que teve conhecimento e consentiu na reprodução assistida heteróloga impugnar a paternidade. Seria "antijurídico, injusto, além de imoral e torpe, que o marido pudesse desdizer-se e, por sua vontade, ao seu arbítrio, desfazer um vínculo tão significativo, para o qual aderiu, consciente e voluntariamente. A circunstância de ser o doador de esperma o verdadeiro pai é desprezada para que prevaleçam os valores éticos da paternidade instituída pela reprodução assistida"[21]. A procriação artificial consentida pelo marido confere o estado de filho matrimonial; tendo uma base moral.

Há ainda o consenso mundial de que o doador de sêmen deve ficar no anonimato, também prevista essa norma pela Resolução nº1358/92, em sua seção IV, 2.

Frente a tais entendimentos, pergunta-se: a criança gerada terá direito de ser informada sobre a sua identidade genética? Alguns países dão esse direito à pessoa quando ela alcançar a maioridade, outros apenas nos casos em que a saúde da pessoa que foi procriada pelo método artificial estiver em risco e seja indispensável para o seu tratamento tal informação.

Entendemos que a única maneira das práticas de reprodução assistida proporcionarem uma maior segurança às relações sociais daí advindas, seria haver uma legislação prevendo que:

a)não se pode estabelecer nenhum vínculo de filiação entre o doador de gameta e a criança gerada, uma vez que, ao doar seu gameta, a pessoa não está manifestando a intenção de paternidade ou de maternidade, não havendo, por isso, nenhuma utilidade social do vínculo afetivo entre o doador e a criança;

b)as informações sobre o doador só serão reveladas quando necessárias nos casos de risco à saúde da pessoa gerada através de reprodução assistida, resguardando-se a identidade civil do doador, como prevê a Resolução do Conselho Federal de Medicina[22].

Guilherme de Oliveiria, citado por Veloso[23] escreveu à respeito do tema dizendo que a tecnologia ocidental encontrou na inseminação heteróloga um meio de resolver o problema da esterilidade do marido sem ofender a tradição da fidelidade judaico-cristã e respeitada a intimidade da família conjugal moderna; esse processo exige, por um lado, um compromisso firme do pater, por outro, a omissão do genitor. É nesta separação entre o pai e o procriador, dolorosa na cultura ocidental e exigindo dos cônjuges um compromisso firme, que se encontra o motivo pelo qual se julga contrário à boa-fé – e abusivo – o exercício da impugnação por quem aceitara a investidura do marido na função social de pai.

Outra questão polêmica dentro do tema da paternidade é à respeito da chamada procriação artificial post mortem, onde a prática não é feita na forma heteróloga pois há a intenção da formação do vínculo familiar. Pode a viúva ou companheira utilizar-se do semên criopreservado do de cujus para promover a fecundação? E a criança resultante, que foi concebida depois que seu pai morreu, terá direito à herança? E se nascer muito tempo após a morte de seu pai, quando já tenha sido feita a partilha dos bens que integravam a herança?

Segundo alguns renomados nomes brasileiros, como Álvaro Villaça de Azevedo[24], nas práticas de reprodução humana assistida devem os doadores estar vivos no momento da inseminação, posicionado-se contra a reprodução assistida post mortem. A mesma posição adota Carlos Alberto Bittar[25] ao dizer que a reprodução assistida post mortem conduz à três situações esdrúxulas:

a)a criança superveniente não terá pai, eis que morto;

b)não poderá levar o nome, nem ser registrado como seu filho;

c)não disporá, ademais, do respectivo convívio.

No entanto, há autores que defendem essa prática, afirmando que o vínculo da filiação, nesses casos será determinado pelo consentimento deixado em vida pelo de cujus, ou seja, se ao depositar seu liquido seminal em um Banco de Sêmen o indivíduo tinha a intenção de utilizá-lo para a reprodução, automaticamente forma-se o vínculo de filiação entre a criança daí oriunda e o pai falecido.

No Brasil, se estabelecido o vínculo de filiação, não se pode negar o direito à herança. Os direitos do nascituro ( indivíduo já concebido no momento da morte) e da prole eventual (aqueles que virão à nascer) estão legalmente assegurados. A lei civil protege os direitos do nascituro em seu artigo 4º do Código Civil. A prole eventual encontra-se referida no capitulo das sucessões com indicação da vontade do testador e, analogicamente, poderá adequar-se ao caso em debate, pois não deixa de ser eventual a prole oriunda de método de fertilização após a morte do fornecedor do material genético. Mas, em se tratando de prole eventual, na lei civil atual a criança só teria direitos por meio de testamento[26].

Defendem ainda esses autores, que no Brasil há solução para o caso de nascimento após a divisão da herança do falecido, aplicando-se os mesmos fundamentos e critérios adotados para as hipóteses de descoberta de filho em investigação de paternidade post mortem, em que ficam assegurados todos os direitos da criança reconhecida após a morte do pai, existindo a ação de petição de herança cumulada com nulidade de partilha.

Frente aos dois lados da questão, posicionamo-nos à favor da reprodução assistida post mortem desde que haja uma declaração ainda em vida do de cujus onde manifeste que deposita deu sêmen com o intuito de reprodução. Caso não haja essa declaração e mesmo assim forem feitos os procedimentos reprodutivos artificiais, a responsabilidade deverá ser do médico que realizou a cirurgia, visto que nesse caso não haverá o vínculo de filiação e, por conseqüência, também não haverá o direito à sucessão. Ainda acreditamos ser justo que, se mesmo havendo a declaração do de cujus, a intenção de se realizar a reprodução artificial só se manifeste após feita a partilha dos bens da herança, é necessário o consentimento dos demais herdeiros para que se realizem os procedimentos.

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Sobre a autora
Anison Carolina Paludo

acadêmica de Direito da Universidade de Passo Fundo (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PALUDO, Anison Carolina. Bioética e Direito:: procriação artificial, dilemas ético-jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2333. Acesso em: 18 abr. 2024.

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