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A rudimentar cidadania brasileira e a Constituição

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4. Barreiras à cidadania assegurada no texto constitucional.

Não existe sociedade humana na qual possa ser afirmada categoricamente a existência de uma cidadania absoluta, plenamente efetiva. Um dos exemplos mais próximos seria a forma de organização política de determinados "cantões" suíços, nos quais a democracia ainda é direta. No entanto, existe uma gradação, uma escala, e o Brasil está ainda bastante distante do ápice possível ao atual estágio civilizatório da humanidade.

Basicamente, pode-se elencar quatro grandes barreiras à efetivação da cidadania no país:

a) o nível de instrução médio da maioria da população brasileira está abaixo do aceitável mundialmente, fato que impede uma visão mais apurada da realidade individual e coletiva, sujeitando o candidato a cidadão ao posto de joguete de um sistema social pernicioso;

b) não há comprometimento das classes detentoras do poder político e/ou econômico com a divisão do "bolo" da renda nacional, fator que imobiliza socialmente vastos seguimentos da população. Logo, milhões priorizarão suas necessidades de sobrevivência, não havendo espaço para sonhos, para a criatividade, para engajamentos cívicos;

c) o Brasil é um país de poucas lideranças. Não há estadistas. Ao contrário do exemplo norte-americano, os movimentos considerados populares, na maioria dos casos, foram promovidos para atender a interesses momentâneos, sem qualquer projeto maior. Os poucos espontâneos eram frágeis e foram duramente esmagados pelo sistema. Sem lideranças, não há luta; sem luta, não se constitui o meio cultural de transformação e formação de um cidadão.

d) Apesar da conquista de um texto constitucional democrático e progressista, gerador de importantes direitos inerentes à cidadania plena, os meios institucionais colocados à disposição do cidadão lesado são ainda bastante deficitários. O "Poder" ainda serve, majoritariamente, ao "Poder".

Cidadania é superação. Só se efetiva com sacrifício pessoal, aglutinação de forças sociais. A esquerda política, que, em países desenvolvidos, exerceu importante papel na consolidação dos direitos e garantias individuais e coletivas, no Brasil, perde-se na própria mediocridade, atendo-se a questões menores, sem projetos para a nação.

Ainda, dentro dos ensinamentos do constitucionalista J. Afonso da Silva:

          "Finalmente, os que reclamam que a democracia nunca fora realizada em sua pureza em lugar algum concebem-na como um conceito estático, absoluto, como algo que há que instaurar-se de uma vez e assim perdurar para sempre. Não percebem que ela é um processo, e um processo dialético que vai rompendo os contrários, as antíteses, para, a cada etapa da evolução, incorporar conteúdo novo, enriquecido de novos valores. Como tal, ela nunca se realiza inteiramente, pois, como qualquer vetor que aponta valores, a cada nova conquista feita, abrem-se outras perspectivas, descortinam-se novos horizontes ao aperfeiçoamento humano, a serem atingidos."
(In "Curso de Direito Constitucional Positivo", José Afonso da Silva, 15ª ed. rev., Malheiros, São Paulo, 01-1998, p. 132/133)

Cabe destacar que as instituições e os meios colocados à disposição do cidadão são construídos, gradativamente, pela própria sociedade organizada, a exemplo do "processo de reconstrução" iniciado com a abertura democrática brasileira. Como lembram Richard H. Popkin e Avrum Stroll, ao comentarem as concepções de John Locke, "o arquiteto teórico da democracia" que conhecemos:

          "Society originates in the attempt to develop such institutions for the purpose of remedying the defects of life without organized society. Men create a society by a voluntary agreement among themselves to erect these institutions". (In "Philosophy", Richard H. Popkin et al., 3. ed., Made Simple Books, Oxford, 1993, p. 83)


5. RUDIMENTOS DE CIDADANIA

A cidadania é resultante do estágio civilizatório de um povo. O Brasil não é o Sudão, mas também está distante da Suécia.

Nosso quadro institucional de efetividade das garantias constitucionais fundamentais (art. 5º, da Carta Magna) é rudimentar. Muito foi prometido, foi constitucionalizado. Muito pouco se fez presente.

A crítica não deve ser dirigida à Constituição Federal. O objetivo deste instrumento legal é lançar as linhas gerais de como se organizará politicamente o Estado. Ao contrário, foi meritório o esforço do legislador constituinte em dar uma silhueta mais democrática ao ordenamento jurídico pátrio. Na verdade, falhou foi a sociedade, falhou o governo, falhou cada cidadão, em não tendo ainda sido capazes de assegurar um mínimo de efetividade aos anseios propostos.

Apesar das assertivas, bem, ou mal, caminha-se para uma sociedade, ao menos, disposta a debater suas perversões. A "democracia", mesmo entre aspas, trouxe uma oportunidade de transparência dos problemas dentro ou fora do Estado. Discutir, opor-se, debater, é a melhor forma de iniciar a longa caminhada que nos separa de uma cidadania engajada como a observada nos países do Hemisfério Norte. Até lá, caminharemos com os nossos rudimentos, nossos trapos, nossas lacunas de efetividade, mas, se continuarmos, chegaremos!


CONCLUSÃO

Não há uma fórmula pronta para tornar um povo, massacrado pela desigualdade, engajado socialmente e politicamente. No entanto, medidas iniciais precisam ser lançadas. Tentativa louvável é o esforço governamental em estabilizar a econômica, através de uma unidade monetária forte. Sem estabilidade econômica, aprofunda-se o abismo social entre aqueles que podem ter acesso à correção monetária e aqueles excluídos que ficam sujeitos à corrosão inflacionária do papel moeda.

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Apesar dos inúmeros defeitos da sociedade americana, esta sempre foi capaz de dar exemplos de cidadania. Cita-se o caso de missionários religiosos que enfrentam a máfia dos cassinos em diversos estados norte-americanos, tentando engajar outros em sua luta; ou os líderes negros que, nas décadas de sessenta e setenta, mobilizaram o país e derrubaram um sistema legal de segregação racial tão odioso quanto o sul-africano, recentemente destruído. O Brasil urge por lideranças que se proponham a dedicar suas vidas a uma causa. Não temos grandes causas nacionais, porque tal circunstância não arrisca o stato quo vigente.

A cidadania efetiva é possível no Brasil, mas dependerá da reunião de fatores de transformação. Algumas iniciativas legislativas, como o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1.990) e o próprio texto constitucional são exemplos que, mesmo em uma sociedade tão confusa e iníqua, podem prosperar ideais básicos fundamentais à proteção do cidadão, seja qual for o papel que ele esteja exercendo.

Outro exemplo de esperança nos movimentos populares é o observado há alguns anos nos campos. O M.S.T. (Movimento dos Sem-Terras) representa, talvez, o maior fenômeno social brasileiro desde "Canudos". Essa iniciativa popular tem sido responsável por acirradas discussões e, muito provavelmente, obrigará o restante da sociedade a diminuir sensivelmente o nível de desigualdade social observada no meio rural, especialmente no que é referente à concentração da terra nas mãos de poucos e, em muitos casos, improdutivos proprietários.

Conclui-se que há futuro para a cidadania brasileira. Resta-nos, portanto, continuar seguindo, superando as etapas, frisando-se que a opção por um texto constitucional assegurador do Estado Democrático de Direito foi válida e deve prevalecer. Todas as possíveis conquistas futuras dependerão da manutenção e aperfeiçoamento da alternativa democrática. Logo, compete não só ao governo, mas a todos, a salvaguarda da aludida escolha.


BIBLIOGRAFIA

          1. DE PLÁCIDO E SILVA; Vocabulário Jurídico. v. I e II, 3ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1993.

          2. SAINT-PIERRE, Héctor L.; Max Weber - entre a paixão e a razão. Editora da Unicamp, 1991.

          3. KELSEN, Hans; Teoria Pura do Direito. Ed. Martins Fontes, 1991.

          4. AFONSO DA SILVA, José; Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros Editores, 15ª ed. rev., São Paulo, 1998.

          5. POPKIN, Richard et al., Philosophy, Made Simple Books, 3ª ed., Oxford, 1993.

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Sobre o autor
Cristóvam do Espírito Santo Filho

advogado em Goiânia (GO), sócio do Escritório Marques Siqueira & Espírito Santo Assessoria Jurídica, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Goiano de Direito Tributário e Universidade Católica de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESPÍRITO SANTO FILHO, Cristóvam. A rudimentar cidadania brasileira e a Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82. Acesso em: 29 abr. 2024.

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Trabalho elaborado para fins de avaliação na disciplina Direito Constitucional do Curso de Especialização em Direito Tributário - Convênio IGDT/UCG

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