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A regulamentação dos consórcios públicos à luz do Projeto de Lei nº 3.884/2004

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3. Da Constituição

O capítulo destinado à normatização da constituição dos consórcios públicos inicia estabelecendo expressamente – numerus clausus, portanto –, os treze objetivos a que os mesmos deverão se limitar, pena de cometimento de desvio de finalidade, a saber:

I – gestão associada de serviços públicos;

II – prestação de serviços, inclusive de assistência técnica, a execução de obras e ao fornecimento de bens à administração direta ou indireta dos entes consorciados;

III – compartilhamento ou uso comum de instrumentos e equipamentos de gestão, manutenção, informática, de pessoal técnico e de procedimentos de licitação e de admissão de pessoal;

IV – produção de informações ou de estudos técnicos;

V – instituição e funcionamento de escolas de governo ou de estabelecimentos congêneres;

VI – promoção do uso racional dos recursos naturais e à proteção do meio ambiente;

VII – exercício de funções no sistema de gerenciamento de recursos hídricos que tenham sido delegadas ou autorizadas;

VIII – apoio e fomento do intercâmbio de experiências e de informações entre os entes consorciados, inclusive no que se refere à segurança pública e ao sistema penitenciário;

IX – gestão e proteção do patrimônio paisagístico ou turístico comum;

X – planejamento, gestão e administração dos serviços e recursos da previdência social dos servidores de qualquer dos entes da Federação que integram o consórcio;

XI – fornecimento de assistência técnica, extensão, treinamento, pesquisa e desenvolvimento urbano, rural e agrário;

XII – ações e políticas de desenvolvimento sócio-econômico local e regional; e

XIII – exercício de competências pertencentes aos entes federados nos termos de autorização e delegação.

Portanto, verifica-se que o rol das possibilidades que se abre aos entes federados, de acordo com o art. 3º e seus incisos do Projeto de Lei em exame, na busca da prestação de serviços públicos mais eficientes ao cidadão, é bastante ampla, possibilitando o efetivo incremento das políticas públicas dos entes federativos brasileiros.

Por exemplo, cria-se a possibilidade de vários municípios se unirem e construírem hospitais, fundos de previdência social de servidores, centros de processamento de dados, instituições promovedoras do uso racional dos recursos naturais e de proteção do meio ambiente, entre outras, que, sem sombra de dúvidas, favorecerão o desenvolvimento sócio-econômico das comunidades beneficiadas.

De se notar, portanto, que o instituto do consórcio público torna-se importante e indispensável instrumento dos Chefes dos Poderes Executivos consorciados na implementação de suas políticas públicas que, a toda evidência, será amplamente utilizado daqui para frente nas ações voltadas ao bem comum.

Ainda, importante referir, também, que o legislador, atento à evolução que experimenta o direito administrativo brasileiro nesse despertar do século XXI, estabeleceu a imprescindível conexão entre consórcio público e as parcerias público-privadas, recentemente integradas à ordem jurídica brasileira, através da Lei Federal n.º 11.079, de 30 de dezembro de 2004, mencionando no § 3º do art. 3º do aludido projeto, que "os consórcios públicos somente poderão estabelecer parcerias público-privadas, ou outorgar concessão, permissão ou autorização de obras ou serviços públicos mediante autorização prevista no contrato de consórcio público, que deverá indicar de forma específica o objeto da parceria, concessão, permissão ou autorização e as condições a que deverá atender". Portanto, outra louvável iniciativa do legislador.

Vale repisar que os novos institutos do direito administrativo, como o consórcio público e as parcerias público-privadas, indicam irreversível tendência de flexibilização das normas de direito administrativo, tendentes a conferir mais autonomia à Administração Pública, visando a adequá-la aos tempos modernos em que as demandas sociais exigem índices de desempenho cada vez elevados em termos de eficiência, eficácia e rapidez, na prestação dos serviços públicos e na realização do interesse público em nosso País.

O texto do Projeto também estabelece as condições para que um consórcio público possa firmar contrato de gestão ou termo de parceria (34).

Hely Lopes Meirelles (35) refere que o contrato de gestão "tem sido considerado como elemento estratégico para reforma do aparelho administrativo do Estado". Enfatiza que, em verdade, não se trata de contrato propriamente dito, mas de acordo operacional celebrado entre a Administração Superior e entes da Administração Indireta ou entidade privada porque não há interesses contraditórios, mas convergentes entre os partícipes. No referido instrumento são estabelecidos metas e prazos de execução, visando a permitir melhor controle de resultados em troca de concessão de maior autonomia aos entes executores.

Já o termo de parceria, instituído pela Lei Federal n.º 9.790/99, é definido como "o instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público" previstas no aludido diploma legal.

De se perceber, portanto, que ditos instrumentos estão em absoluta consonância com a possibilidade, insculpida no art. 37, § 8º da CF, de ampliação de autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta através da celebração de contratos entre seus administradores e o poder público, nos termos da redação dada pela Emenda Constitucional n.º 18/98 (Reforma Administrativa). Assim, sem dúvidas, são figuras jurídicas – contrato de gestão e termo de parceria – que também fomentam a flexibilização do direito administrativo.

Aliás, nesse compasso, vale ressaltar que o Decreto n.º 2.487, de 02 de fevereiro de 1998, que estabelece critérios e procedimentos para a elaboração, acompanhamento e avaliação dos contratos de gestão em nível federal, disciplina em seu artigo 4º, inciso IV, que os aludidos contratos deverão conter "medidas legais e administrativas a serem adotadas pelos signatários e partes intervenientes com a finalidade de assegurar maior autonomia de gestão orçamentária, financeira, operacional e administrativa" imprescindíveis ao cumprimento dos objetivos e metas.

Contudo, a despeito da mencionada previsão legal, importa salientar a existência de entendimento doutrinário contrário, defendido pela eminente Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (36), considerando que a celebração de contratos de gestão, que tem por escopo "contratualizar o controle que a Administração exerce sobre as entidades da Administração Indireta", conferindo maior autonomia a tais entidades, em troca de atingimento de prazos, metas e objetivos contratuais, afigura-se como medida inviável, tendo-se em vista que seria defeso à Administração Pública abrir mão dos controles estabelecidos nos artigos 19 a 29 do Decreto-lei n.º 200/67.

Hely Lopes Meirelles (37) também entende que o § 8º do art. 37 da CF, que respalda a celebração de contratos de gestão, é "de difícil aplicação à Administração direta" porque os órgãos públicos não têm personalidade jurídica e nem vontade própria, o que inviabilizaria a celebração de acordos válidos juridicamente. Todavia, sustenta a viabilidade da celebração de tais contratos com Administração Indireta, haja vista serem dotadas de personalidade jurídica própria, a despeito de seus dirigentes serem "escolhidos pela Administração Superior, que pode desde logo fixar metas, prazos e demais condições impostas ao desempenho dos escolhidos". Argumenta, ainda, que, face ao princípio da legalidade, o contrato de gestão não é fonte de direitos, constituindo-se, tão-somente, em fato jurídico que possibilita a aplicação de determinados benefícios previstos em lei.

Os contratos de gestão também serão utilizados para regular a relação entre o consórcio público e organizações sociais (38), serviços sociais autônomos (SESI, SESC, SENAI, SEBRAE, SESCOOP) (39) e iniciativa privada.

Portanto, depreende-se que o instituto do consórcio público, bem como suas peculiaridades contratuais vistas acima, reforça o entendimento de que a pretendida Reforma do Aparelho Administrativo do Estado trazida pela EC n.º 19/98 ganha materialidade, através da utilização de mecanismos de flexibilização do direito administrativo, concedendo-se mais autonomia ao gestor público em troca de melhores resultados.

Aos entes interessados em estabelecer consórcio visando ao desenvolvimento de ações na área da saúde fica a notícia de que o projeto garante acesso gratuito aos usuários do dito serviço (40), medida que se coaduna com o dever do Estado capitulado no art. 196 da Constituição Federal (41). Nesse tocante, vale lembrar que os recursos previstos no § 2º do art. 198 da Carta Federal, de utilização compulsória em ações e serviços públicos de saúde, poderão ser aplicados em consórcios públicos de prestação de serviços na área da saúde.

Quanto à estrutura organizacional do consórcio público, o projeto prevê a existência de uma assembléia geral, como sua "instância máxima" (42) composta exclusivamente pelos Chefes do Poder Executivo dos entes consorciados, que deverá, dentre outras tarefas, elaborar, aprovar e modificar o estatuto que disciplinará as atividades do consórcio, bem como apreciar e aprovar as propostas orçamentárias (43).

No que se refere à Lei de Responsabilidade Fiscal, além de a assembléia geral zelar pela transparência em suas reuniões, dando atendimento ao preconizado no art. 1º, § 1º da Lei Complementar n.º 101/2000, também será obrigação do consórcio fornecer as informações necessárias para que sejam consolidadas nas contas dos entes consorciados todas as despesas realizadas com os recursos entregues em virtude de contrato de rateio, de molde a possibilitar o devido registro nas contas de cada ente da Federação, na conformidade dos elementos econômicos e das atividades ou projetos atendidos (44).

Com relação à quantidade de votos que cada ente consorciado terá na assembléia geral, o projeto disciplina que tal definição deverá constar no protocolo de intenções, assegurado, pelo menos, um voto a cada ente consorciado (45). Portanto, pode-se concluir que não há falar em tratamento isonômico entre os consorciados. O poder de voto estará atrelado, ao que tudo indica, ao poder de ingerência e da gama de atribuições de cada consorciado na referida gestão associada.

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De uma forma geral, todas as deliberações da assembléia geral exigirão mais da metade dos votos (46).

Outra importante definição para fins de fiscalização e controle: será considerado representante legal do consórcio "a pessoa física que foi eleita presidente da assembléia geral, desde que Chefe de Poder Executivo" (47), cujo mandato será de um ou mais exercícios financeiros, na forma que dispuser o estatuto, cessando automaticamente no caso de o eleito deixar de ocupar a Chefia do Executivo consorciado. E mais, há previsão expressa atribuindo responsabilidade ao representante legal, perante os órgãos de controle externo, pela gestão do uso das verbas públicas no consórcio (48).

Como já referido, em termos de fiscalização do controle externo, os tribunais de contas fiscalizarão as contas do representante legal consoante as disposições das normas de administração contábil, financeira e orçamentária próprias da Administração Pública. É que existe determinação expressa aos consórcios para que executem suas receitas e despesas em obediência as normas de direito financeiro aplicáveis às entidades públicas (49).

Diante dessa previsão legal, surge aspecto de singular peculiaridade: um consórcio poderá estar submetido à competência fiscalizatória de mais de um tribunal de contas. Por exemplo, em um consórcio celebrado entre a União, Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro, serão competentes à fiscalização do controle externo, concorrentemente, os Tribunais de Contas da União, do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro, cada um, apreciando as contas do consórcio relativas aos recursos repassados por seu ente jurisdicionado, pois o consórcio integrará a administração indireta de todos os entes participantes do contrato de gestão associada.

Pensa-se que seja oportuno, visando à economia de recursos humanos e materiais das três esferas federativas, estabelecer-se convênio de cooperação entre as cortes de contas visando a disciplinar o assunto através do estabelecimento de conjunto de procedimentos que, atendendo ao princípio constitucional da economicidade, torne a tarefa fiscalizatória das contas consorciais o menos onerosa possível aos erários envolvidos. Como se vê, este novel instituto trará aos órgãos do controle externo desafios relativos ao estabelecimento de novos procedimentos, que deverão ser racionais na utilização dos recursos disponíveis e eficazes em seus resultados.

Tais desafios reforçam o entendimento de que urge "a criação de um sistema de controle externo nacional" (50) em que haja compartilhamento de dados, ações fiscalizatórias conjuntas e, sobretudo, padronização processual pelas 34 cortes de contas brasileiras.

Outro aspecto ligado à constituição do consórcio público refere que a sede do consórcio é a do domicílio de seu representante legal, se o estatuto não dispuser diversamente (51). Nesse sentido, vale lembrar que a Justiça competente para receber e processar demandas judiciais em face de um consórcio, que contemple a União, será a Federal, segundo dispõe o art. 109, inciso I, da Constituição Federal, respeitadas as exceções nele expressas, referentes às causas que envolvam acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.

Ainda, o contrato de consórcio será tido como celebrado quando o protocolo de intenções for ratificado, mediante lei, por todos os entes que o subscreveram (52), se não houver disposição expressa em contrário no aludido protocolo. Se o ente levar mais de dois anos para ratificar o protocolo de intenções, o seu ingresso no consórcio público dependerá de aceitação unânime da assembléia geral (53). Entretanto, se antes da celebração do protocolo de intenções , o ente da Federação disciplinar através de lei a sua participação no consórcio público, o contrato de consórcio será considerado celebrado independentemente da ratificação do protocolo de intenções (54).

Por fim, no que tange à constituição de consórcios públicos, o Projeto de Lei também determinou a responsabilidade subsidiária de todos os entes consorciados pelas obrigações do consórcio público (55).

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Sobre o autor
Cleber Demetrio Oliveira da Silva

Sócio da Cleber Demetrio Advogados Associados, da RZO Consultoria e Diretor Executivo do Instituto de Desenvolvimento Regional Integrado Consorciado (IDRICON21), Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS, Especialista em Gestão de Operações Societárias e Planejamento Tributário pelo INEJE, Mestre em Direito do Estado pela PUCRS, Professor de Ciência Política no curso de graduação da Faculdade de Direito IDC, de Direito Administrativo em curso de pós-graduação do IDC e Professor de Direito Administrativo e Direito Tributário em cursos de pós-graduação do UNIRITTER da rede Laureate International Universities.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira. A regulamentação dos consórcios públicos à luz do Projeto de Lei nº 3.884/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 654, 22 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6614. Acesso em: 4 mai. 2024.

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