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As doutrinas de prevalência da substância sobre a forma diante do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional

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01/02/2003 às 00:00
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VI– Conclusões

Este estudo não pretendeu de forma alguma esgotar o tema, que possui ainda diversos questionamentos referentes aos vários aspectos desta relação jurídica tributária de qualificação ou desqualificação dos atos de planejamento tributário realizados pelo contribuinte. Algumas considerações, porém, ficam registradas para iniciar uma reflexão sobre o assunto:

1.A necessidade de uma arrecadação de tributos cada vez mais eficaz, para não dizer voraz, leva o Fisco a aperfeiçoar as regras de fiscalização e arrecadação, aderindo aos institutos já desenvolvidos e aplicados no direito comparado.

2. Por outro lado o contribuinte, muitas vezes para a sobrevivência de seu próprio negócio, busca formas de impedir, reduzir ou retardar a imposição tributária mediante a organização e o planejamento dos seus débitos.

3.Esta forma adotada pelo contribuinte pode assumir posições diferenciadas e tomar o caráter de licitude, denominando-se elisão fiscal se preceder ao fato gerador da obrigação tributária, for realizada por meio de formas permitidas ou não defesas em lei e se constituir em ato próprio da finalidade negocial. Será, porém, considerada ilícita e denominada evasão fiscal se for aplicada após a ocorrência do fato gerador e se visar exclusivamente a ocultação daquele fato sujeito à imposição tributária.

4.O Código Tributário Nacional prevê a hipótese de se desconsiderar o planejamento tributário viciado, conforme disposto nos artigos 149, VII e IX, 150, § 4.º, parágrafo único do artigo 154, 155, I, parágrafo único do artigo 185, evitando que o sujeito passivo seja beneficiado ao agir de forma ilícita, com dolo, fraude ou simulação e permitindo a revisão do lançamento já efetuado, impedindo a sua homologação quando desta forma for previsto o lançamento, afastando a moratória para impor as penalidades cabíveis ou considerando fraudulenta a alienação de bens depois de inscrito o crédito tributário na dívida ativa e iniciada a execução, tudo conforme seja a forma ilícita adotada.

5.O nosso ordenamento jurídico tributário é regido por princípios constitucionais e tributários, dentre eles o princípio da legalidade, que se desdobra nos princípios da tipicidade fechada, segundo o qual a norma deve prever todos os aspectos da relação tributária, e o da segurança jurídica, segundo o qual o contribuinte somente pode sofrer detrimento patrimonial caso lei anterior, recepcionada pelo ordenamento vigente, assim o determine.

6.Quando o sistema jurídico tributário pátrio adota regras do regime de common law, sistema que dispensa a previsão legal como parâmetro para os julgamentos e que insere as regras jurídicas mediante a simples confirmação de julgados considerados relevantes, não pode haver dispensa do procedimento de civil law, continuando a prevalecer o respeito ao processo legislativo e hierárquico de inserção de regras jurídicas e, ainda, o uso de critérios jurídicos na interpretação das normas e dos atos ou negócios realizados pelos contribuintes.

7.Os sistemas tributários de direito comparado vêm inserindo regras de interpretação nas quais há prevalência da substância dos atos ou negócios realizados pelo contribuinte em detrimento da sua forma, uma vez detectado que estes mesmos contribuintes simularam atos ou negócios visando exclusivamente afastar, reduzir ou retardar a incidência tributária.

8.A norma contida no artigo 135 do Código Tributário Nacional, porém, não inseriu a figura da desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine no direito tributário pátrio, pois não houve a inclusão desta doutrina por lei complementar e sequer a previsão dos seus aspectos por lei ordinária tratando, portanto, aquele artigo, de figura distinta, dispondo ainda sobre um leque mais amplo de sujeitos passivos do que os sócios-gerentes e administradores, sujeitos passivos da desconsideração, e prevendo outras diversas condutas abusivas além da prática de atos com excesso de poder ou infração à lei. O parágrafo único do artigo 116 também não levanta o véu da pessoa jurídica para adentrar no patrimônio dos sócios.

9.O dispositivo do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional foi inserido pela Lei Complementar n.º 104, de 10 de janeiro de 2001. Houve o atendimento ao artigo 146 da Constituição Federal que dá competência à lei complementar para estabelecer normas gerais em matéria tributária sobre obrigação, crédito, lançamento, dentre outras funções.

10.O parágrafo único do artigo 116 trata da desconsideração de atos ou negócios simulados e que dissimularam um fato suscetível de tributação, um ou alguns de seus elementos, o que em muito se aproxima do teste de finalidade negocial ou business purpose test aplicado no direito tributário comparado.

11.Não há nessa inovada previsão normativa a utilização do critério econômico de tributação e sim o critério jurídico de abuso de direito ou de formas pois, o que é levado em conta não é o resultado econômico almejado pelo contribuinte ao afastar, reduzir ou retardar a incidência da tributação com o ato simulado e, sim, a própria forma simulada deste ato negocial e sua finalidade única de burlar a regra de incidência tributária não se amoldando a nenhum objetivo empresarial ou contratual.

12.A aplicação pelo Fisco deste dispositivo requer a sua previsão por lei em sentido estrito delimitando os seus aspectos como: o procedimento fiscal adotado para a descaracterização do ato ou negócio simulado e caracterização do dissimulado, a autoridade competente, os meios de prova e os demais elementos desta teoria do abuso de forma e de direito adotada, o que, repetimos, não pode entrar em conflito com os princípios de garantia do contribuinte, com os conceitos adotados do direito privado ou com os critérios jurídicos de interpretação das normas e dos fatos imponíveis.


CONCLUSÕES

1 - Objeto do estudo: procura esclarecer a intenção do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, bem como sua constitucionalidade ou compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio.

II – A prática de organização dos débitos tributários é permitida em praticamente todas as formas jurídicas do mundo, porém não de forma ilimitada. O comportamento do sujeito passivo de recolher os valores tributados aos cofres públicos poderá ser classificado como ato lícito ou ilícito, conforme os meios utilizados e os fins almejados pelo contribuinte.

III – O nosso ordenamento jurídico tributário não possui impedimentos para o planejamento tributário lícito. Há, sim, previsão legal possibilitando à Administração desconsiderar o planejamento tributário viciado, conforme disposto nos artigos 149, VII e IX, 150, § 4.º, parágrafo único do artigo 154, 155, I, parágrafo único do artigo 185 do Código Tributário Nacional, evitando que o sujeito passivo seja beneficiado ao agir com dolo, fraude ou simulação.

IV – Na hipótese do artigo 135 o que se prevê é tão somente a responsabilização solidária dos terceiros sujeitos discriminados no artigo 134, quando os atos sejam praticados com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto e dentro dos lindes das conseqüências de referidos atos. Não é caso de desconsideração da personalidade jurídica que, diferentemente, requer um resultado fraudulento e atinge, de forma ilimitada, o patrimônio dos mandatários das empresas, como os sócios-gerentes e administradores, até a quitação total do débito.

V – Art.116, § único do CTN - o dispositivo também não trata da figura da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário, pois não insere na legislação tributária os elementos ou aspectos necessários para que se levante o véu da pessoa jurídica adentrando no patrimônio dos sócios e, sim, a possibilidade de não serem consideradas, para fins de subsunção à norma jurídica tributária, as formas com as quais foram realizados pelo contribuinte atos e negócios em virtude de razões referentes à substância destes atos e negócios, o que deve ser delimitado por meio de lei específica.

VI - O business purpose test, na tradução: teste de finalidade negocial, pode ser definido como o teste que verifica, por meio do critério jurídico de abuso de direito ou de formas, se o negócio ou ato praticado possuía finalidade única de afastar, reduzir ou retardar a incidência de tributos, caso em que poderá ser desconsiderado.

VII - O parágrafo único do artigo 116 trata da desconsideração de atos ou negócios simulados e que dissimularam um fato suscetível de tributação, um ou alguns de seus elementos, o que em muito se aproxima do teste de finalidade negocial ou business purpose test aplicado no direito tributário comparado.

VIII - Não há nessa inovada previsão normativa a utilização do critério econômico de tributação e sim o critério jurídico de abuso de direito ou de formas. O que é levado em conta não é o resultado econômico almejado pelo contribuinte ao afastar, reduzir ou retardar a incidência da tributação com o ato simulado e, sim, a própria forma simulada deste ato negocial e sua finalidade única de burlar a regra de incidência tributária não se amoldando a nenhum objetivo empresarial ou contratual.

IX - A aplicação pelo Fisco deste dispositivo requer a sua previsão por lei em sentido estrito, delimitando os seus aspectos como: o procedimento fiscal adotado para a descaracterização do ato ou negócio simulado e caracterização do dissimulado, a autoridade competente, os meios de prova e os demais elementos desta teoria do abuso de forma e de direito adotada, não podendo entrar em conflito com os princípios de garantia do contribuinte, com os conceitos adotados do direito privado ou com os critérios jurídicos de interpretação das normas e dos fatos imponíveis.


VII-NOTAS

01. A obrigação tributária pode ser principal ou acessória e sua definição encontra-se no Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, artigo 113:

"Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

"§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

"§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato de sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente a penalidade pecuniária."

02. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 711.

03. Idem, p. 711.

04. Ver sobre a competência tributária nos artigos 6.º a 15 do Código Tributário Nacional.

05. In ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 5. ed. 6. tir. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 22-3.

06. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 5.

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07. Idem, p. 1.

08. Idem, p. 12.

09. Para aprofundamento sobre os sujeitos passivos no direito tributario comparado recomendamos a obra: GONZÁLEZ, Luis Manoel Alonso et al. Sujetos pasivos y responsables tributarios: XVII Jornadas Latinoamericanas de Derecho Tributario. Madri: Instituto de Estúdios Fiscales - Marcial Pons, 1997.

10. Ver respectivamente artigos 124; 129 e segs.; 134 e 135; 136 e segs. do CTN e 150, § 7.º da CF.

11. Segundo BULGARELLI, 2000, p. 254: "Pela economicidade atingem-se aquelas atividades referentes à criação de riquezas (bens e serviços para o mercado); daí que se exclui o conceito de quem não produz riquezas e, portanto ficaram fora,entre outras, do regime do Projeto, as associações e fundações.

"Por via da organização acolhem-se aquelas atividades que sendo de criação de riquezas, portanto, econômicas, implicam na coordenação e organização dos fatores de produção; por isso exclui-se da qualificação empresarial, as profissões intelectuais.

"Através da profissionalidade abrangem-se aquelas atividades que sendo econômicas e organizadas são exercidas habitual e sistematicamente, ficando portanto de fora, as empresas ocasionais, mas albergando as sazonais". (grifos nossos).

12. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. Saraiva: São Paulo, 1997, p. 148.

13. Apud HUCK, Hermes Marcelo. Idem, p. 31.

14. "O primeiro jurista que concebeu o critério econômico como regra de interpretação, e o introduziu no direito tributário foi Enno Becker (17/5/1869 – 31/1/1940), alemão de formação civilistica, e não tributarística, até porque no seu tempo o currículo universitário não incluía o direito tributário". HARTZ, Wilhelm. Interpretação da lei tributária: conteúdo e limites do aspecto econômico. (trad. Brandão Machado). São Paulo: Resenha Tributária, 1993, p. 7.

15. Ibidem, p. 8.

16. Idem, p.8.

17. Conforme BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2. ed. São Paulo: Lejus, 1999, p. 131.

18. HARTZ, Wilhelm. Interpretação da lei tributária: conteúdo e limites do aspecto econômico. (trad. Brandão Machado). São Paulo: Resenha Tributária, 1993, p. 9-10.

19. Apud HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. Saraiva: São Paulo, 1997, p. 71.

20. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

21. Apud HUCK, op. cit., p. 87.

22. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 63.

23. JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 59.

24. Apud Ibiden, p. 60.

25. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111.

26. Idem, p. 110.

27. APPEALS, United States Court of. Ohio Pub. Employees Retirement System v. Betts. Disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?court=US&vol=492&invol= 158> Acesso em: 13 jun. 2001, p. 1.

28. HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. Saraiva: São Paulo, 1997, p. 171.

29. Ver ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Acadêmico de Direito. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999, p. 491.

30. Direito Civil. vol. 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 237-238.

31. Interpretação da lei tributária: conteúdo e limites do aspecto econômico. (trad. Brandão Machado). São Paulo: Resenha Tributária, 1993, p. 24.

32. GRECO, Marco Aurélio. Planejamento fiscal e a interpretação da lei tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 131.

33. Idem, p. 158.

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Sobre a autora
Lais Vieira Cardoso

Analista judiciária do TRT da 15ª Região, professora universitária do Centro Universitário Moura Lacerda, Mestre em Direito das Obrigações Público e Privado pela UNESP de Franca e especialista em Direito Tributário pela PUC Campinas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Lais Vieira. As doutrinas de prevalência da substância sobre a forma diante do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3684. Acesso em: 18 mai. 2024.

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