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O princípio de não discriminação

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15. Como adverte Pizzorusso em relação ao ordenamento Constitucional italiano, com o expresso compromisso de promover o bem de todos, sempre numa linha de eliminar desigualdades materiais, não se persegue um inalcançável igualitarismo. E isso não só deriva de óbices de natureza social, econômica, política e cultural intransponíveis de logo, como de alguns dispositivos da própria Constituição, como o que na ordem econômica assegura a livre iniciativa (art. 170), piso salarial proporcional à extensão e complexidade do trabalho (art. 7º, V) e os muitos que fixam discrimens autorizados com vistas a proteger a mulher, os deficientes, os economicamente hipossuficientes, desempregados etc., sempre com vistas a limitar as disparidades de condições econômicas e sociais derivadas das diferenças de renda dentro de um certo marco eqüitativo, tanto que se mostra constitucionalmente autorizada, sempre, toda solução que imponha aos que gozam de rendas mais elevadas um maior ônus na responsabilidade pelos ingressos financeiros reclamados pelo Estado, para atender a seus objetivos constitucionais de construir, democraticamente, uma sociedade mais justa, mais fraterna, comprometida com o bem-estar de todos e o desenvolvimento que a todos beneficie (art. 145, § 1º, Preâmbulo, 170).


16. Convém frisar-se que a nossa Constituição, à semelhança da italiana e da portuguesa, entre outras, em seu art. 3º, deixou livre de dúvidas que a nossa igualdade perante a lei é mais que uma mera igualdade de aplicação da lei, é igualdade através da lei, donde o discriminar desautorizado resultaria não só de editar leis desigualadoras materialmente, como omitir-se o legislador de editar normas que objetivem a eliminação das discriminações já existentes no seio da sociedade. Ao lado da inconstitucionalidade tradicional (quebra, pelo Estado, do dever de omitir-se) convive, agora, a inconstitucionalidade por omissão (quebra, pelo Estado, do seu dever de agir). Traçou-se, portanto, como objetivo dos poderes públicos, não apenas a abolição das discriminações desfavoráveis, mas também a realização positiva de intervenções, encaminhadas para corrigir as desigualdades de fato existentes no meio social, não apenas as derivadas do passado, como as geradas no presente, mesmo quando oriundas de causas naturais.

E aqui retomamos a reflexão já em parte feita no item 12.

A positivação dos direitos fundamentais (inclusive o de não discriminação), como direitos de acesso e utilização de prestações por parte do Estado é dos mais desafiadores problemas postos para os constitucionalistas em nossos dias.

Como salienta Canotilho14, os poderes públicos têm uma significativa quota de responsabilidade no desempenho de tarefas econômicas, sociais e culturais, incumbindo-lhe pôr à disposição dos cidadãos prestações de várias espécies, como instituições de ensino, saúde, segurança, transportes, telecomunicações etc. À medida em que concretiza essas responsabilidades, resulta para os cidadãos o direito de igual acesso, obtenção e utilização de todas as instituições públicas criadas pelos poderes púbicos, a par do direito de igual quota-parte (participação) nas prestações que esses serviços ou instituições prestam à comunidade.

Com base nesse pressuposto, a doutrina fala em direitos derivados a prestações, derivados porque só exercitáveis segundo a medida das capacidades existentes. São direitos suscetíveis de tutela jurisdicional, porque seus titulares podem postular sua proteção junto aos tribunais e em termos individuais, reclamando igual prestação, igual acesso, e também a manutenção do nível de realização que os direitos fundamentais tenham adquirido. Neste sentido se fala em cláusula de proibição de evolução reacionária ou retrocesso, o que obviaria, por exemplo, que assegurada legalmente certa prestação em termos de seguridade social pudesse ela ser posteriormente eliminada, retornando sobre seus passos.

A par disso, cabe a indagação: existem direitos originários a prestações? Em termos mais claros: se os direitos derivados nascem com a institucionalização dos serviços, consistindo eles na garantia do acesso não desigualador a tais serviços, haverá o direito originário à prestação, ainda quando inexistente o serviço institucionalizado, e também o direito de compelir o Estado a institucionalizar os serviços necessários à garantia do igual tratamento de todos os cidadãos?

Uma significativa parte da doutrina nega a configuração dos direitos originários como verdadeiros direitos. O fato desses direitos estarem dependentes da ação do Estado e apresentarem um inequívoco déficit de exeqüibilidade e de exigibilidade judicial leva esses autores a falarem da aporia dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, reconduzindo a problemática dos direitos sociais para o campo da "política social", ao mesmo tempo em que reduzem o princípio da democracia econômica, social e cultural a uma simples linha de direção da atividade do Estado.

Canotilho insurge-se e afirma que em face da Constituição portuguesa (o que vale também, ainda que menos radicalmente, para a nossa) a normativização expressa de direitos sociais, econômicos e culturais nela realizada significa o reconhecimento do princípio da democracia econômica, social e cultural não apenas como princípio objetivo, conformador de medidas estatais, mas também princípio fundamentador de prestações subjetivas.

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Acentuando a radicalidade de sua posição afirma: o entendimento dos direitos sociais, econômicos e culturais como direitos originários, implica, como já salientado, numa mudança na função dos direitos fundamentais e põe com acuidade o problema de sua efetivação. Não obstante se falar aqui em efetivação dentro de uma "reserva possível", para significar a dependência dos direitos econômicos, sociais e culturais dos "recursos econômicos", a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais não se reduz a um simples "apelo" ao legislador. Existe uma verdadeira imposição constitucional legitimadora, entre outras coisas, de transformações econômicas, sociais, na medida em que estas forem necessárias para a efetivação desses direitos.

Ainda quando a Constituição brasileira de 1988 não tenha compromissos expressos com a socialização dos meios de produção e a institucionalização do socialismo, como ocorre na Constituição portuguesa (arts. 2º, 9º, d, 80, c e 81, falando em socialização dos meios de produção e em economia planificada), o certo é que nosso art. 3º impõe como tarefa do Estado promover a progressiva redução de desigualdades sociais, econômicas e culturais, o que pode, perfeitamente, servir de base para construirmos, entre nós, a categoria dos direitos originários a prestações. Daí por que se me afiguram aceitáveis as conclusões de Canotilho.

Embora os direitos sociais, econômicos e culturais estejam dependentes de uma reserva de medida legislativa e sejam considerados como leges imperfectae eles possuem relevante significado jurídico como direitos subjetivos:

1) as normas Constitucionais consagradoras de direitos sociais, econômicos e culturais implicam uma interpretação das normas legais de modo conforme com elas (por ex., no caso de dúvida sobre o âmbito de segurança social deve seguir-se a interpretação mais extensiva possível);

2) a inércia do Estado quanto à criação de condições de efetivação pode dar lugar a inconstitucionalidade por omissão;

3) as normas constitucionais consagradoras de direitos econômicos, sociais e culturais implicam a inconstitucionalidade das normas legais que não desenvolvem a realização do direito fundamental ou realizam diminuindo a efetivação legal anteriormente atingida.

A elas, acrescentaríamos. No sistema brasileiro constitucional, há direito originário a prestação individual sempre que seja possível com utilização dos recursos orçamentários já autorizados e existentes e dos serviços já organizados e institucionalizados, se oferecer a sua tutela, o que se postulará mediante o mandado de injunção, como incidente no processo em que se pôs a relação jurídica litigiosa que se afirma incluindo ama questão de discriminação, por falta de norma regulamentadora do exercício desse direito (inciso LXXI do art. 5º da CF, § 1º desse mesmo dispositivo).


NOTAS

1. " A condição humana", Forense Universitária, ano 1981, pág. 188.

2. Ob; cit; pág.227.

3. "O devido processo legal e a razoabilidade das leis"; Carlos Roberto de Siqueira Castro; Forense- rio; 1989; pág. 9; n° 3.

4. " O conteúdo jurídico do principio da igualdade"; ed. Revista dos tribunais; São Paulo; 1984.

5. " Mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e habeas data – processo e constituição", Ed. Forense; Rio de Janeiro; 1989; pág.3.

6. "Direito constitucional"; Ed. Almedina; Coimbra; 4° edição; 1987; pág. 149. e segs.

7. " Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976"; Ed. Almedina; Coimbra; 1983; págs. 125/26

8. Gerard Cohem Jonatham; " La convention europenne des Detroits de I’homme"; Presses Universitare de ‘Aix- marseille, 1989, págs. 539/43.

9. Alessandro Pizzorusso, " Lecciones de derecho constitucional", Ed. Centro de estudos Constitucionales, Madri, 1984, págs. 163. e segs, de quem aproveitamos a Itália.

10. "L’egualianza giurindica nell’ ordinamento constituzionale", Ed. Eugenio Jovene, Nopolis, 1966, págs. 1989. e segsm de quem aproveitamos os informes sobre o problema da Alemanha.

11. " Constituição dirigente e vinculação do legislador", Coimbra editora ltda, Coimbra, 1982, pág.380 e segs.

12. Em matéria de direito do trabalho a nível internacional temos, aprovadas pelo Brasil a convenção n. 111, de 1958, da OIT que consagrou, de forma ampla, o principio de não discriminação em matéria de emprego e profissão. A Carta da OEA. A convenção n.19 que trata da igualdade de tratamento entre os estrangeiros e nacionais em matéria de acidente de trabalho; a convenção n.100 que prevê salário igual para trabalho de igual valor; A convenção de 117, que em sua parte V cuida da não discriminação em matéria de raça, cor, sexo, crença, associação tribal ou filiação sindical e, por último a Convenção de 118 que dispõe sobre a igualdade de tratamento entre nacionais e não nacionais em previdência social, todas essas da OIT e ratificados pelo Brasil. A respeito da matéria, ver " Direito internacional do trabalho", de Arnaldo Sussekind, LTR edit.

13. Ob. Cit, pág. 164.

14. " Constituição dirigente", cit, pág. 385. e segs.

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Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. O princípio de não discriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -366, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2990. Acesso em: 12 mai. 2024.

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