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Do ato infracional

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01/11/2001 às 01:00
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5. Da competência para a aplicação de medida sócio-educativa

Dentre as inúmeras e valiosas inovações do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº8069/90, estão alterações na jurisdição do Juízo menorista e na atividade até então promocional do Ministério Público, muito visíveis quanto ao instituto da remissão.

É daquele texto legal :

"art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

.............................."

"Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.

Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

Art. 127. A remissão não implicará necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação."

Dúvida surgiu quanto aos limites da remissão, expressa e inovadoramente confiada ao Ministério Público, a título de perdão antecipado ao início do procedimento judicial, ex vi do art. 126, caput. Em seu parágrafo único a concessão da mesma remissão, após a instauração do procedimento, fica restrita ao Juízo. Clara a distinção de atribuições ministerial e jurisdicional decorrente de momento pré-processual e judicial. Assim verificado, torna-se fácil concluir que a cumulação de remissão como medida sócio-educativa só é admissível em Juízo e nunca na fase pré-processual ou por iniciativa do representante do Ministério Público.

É o Ministro José Dantas (RMS 1.967-6-SP) que, entendendo nessa linha de pensamento, remete à necessidade de interpretação sistemática do art. 127; e o faz em razão das previsões dos arts. 146, 148 e 180 do mesmo Estatuto. São regras de ordenamento da função jurisdicional e sua distinção da função ministerial.

É destes preceitos :

"Art. 146. A autoridade a que se refere esta Lei é o Juiz da Infância e da Juventude, ou o Juiz que exerce essa função, na forma da Lei de Organização Judiciária local".

"Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:

I - conhecer de representações promovidas pelo Ministério Público, para apuração de ato infracional atribuído a adolescente, aplicando as medidas cabíveis;

II - conceder remissão, como forma de suspensão ou extinção do processo."

"Art. 180. Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do Ministério Público poderá :

I - promover o arquivamento dos autos;

II - conceder a remissão;

III - representar à autoridade judiciária para aplicação de medida sócio-educativa."

Como se vê, as duas hipóteses de remissão do art. 126 são a ministerial, encontrada no caput, e a judicial, tratada no parágrafo. A seguir o art. 127 preconiza que a remissão pode, eventualmente, incluir a aplicação de medidas legalmente previstas, à exceção da colocação em regime de semiliberdade e internação, nos termos do art. 148, II, ou seja, como de competência judicial.

Some-se que a previsão do art. 127 há de estender-se às atribuições peculiares do Ministério Público, para permitir cumulação com a concessão da remissão do art. 180, I, e da representação para aplicação de medida sócio-educativa, do inciso II. Apenas assim se permitirá dar atenção à norma dos arts. 181 e 182. Desta transcrevemos :

"Art. 181. Promovido o arquivamento dos autos ou concedida a remissão pelo representante do Ministério Público, mediante termo fundamentado, que conterá o resumo dos fatos, os autos serão conclusos à autoridade judiciária para homologação.

"Art. 182. Se, por qualquer razão, o representante do Ministério Público não promover o arquivamento ou conceder a remissão, oferecerá representação à autoridade judiciária, propondo a instauração de procedimento para aplicação da medida sócio-educativa que se afigurar a mais adequada.

§ 1º. A representação será oferecida por petição, que conterá o breve resumo dos fatos e a classificação do ato infracional e, quando necessário, o rol de testemunhas, podendo ser deduzida oralmente, em sessão diária, instalada pela autoridade judiciária.

§ 2º. A representação independe de prova pré-constituída da autoria e da materialidade".

Oportunas as conclusões alinhavadas pelo Ministro José Dantas acerca da exegese dos referidos preceitos e das quais anotamos : "Em suma, o aparente conflito de normas secundárias contido na discriminação dos procedimentos formais cotejados, reclama solucionar-se pela nitidez das normas primárias, do modo como a lei delimitou com absoluta clareza o campo jurisdicional, ao lado do campo postulatório. E se a este último consentiu a ministração da remissão, subordinada à homologação judicial, não significa que, por força apenas das regras de procedimento dessa ministração judicialiforme, tenha consentido imiscuir-se o Ministério Público no âmago da função jurisdicional traçado pela própria lei, qual de aplicar medidas coercitivas, de natureza parapenal, como são as chamadas medidas sócio-educativas aplicáveis aos adolescentes infratores" ( RMS 1.967-6-SP).

Em precioso e conclusivo parecer da lavra do Subprocurador-Geral Edinaldo de Holanda, onde reexaminados os preceitos do Estatutos, assim se manifestou o Ministério Público Federal:

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"1. Deriva-se a atual inconformação do ponto de vista esposado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, segundo o qual, é da competência daquela instituição a aplicação da medida de advertência, de natureza sócio-educativa, aos menores e em razão da prática de ato anti-social.

2. Sobretida convicção nasce fundamentalmente da exegese do art. 127 da Lei nº 8069, de 13.07.90, que faculta incluir no ato de remissão a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação.

3. Argüi o órgão ministerial que o entendimento do v. acordão recorrido de que a aplicação das medidas sócio-educativas é da exclusiva competência do Poder Judiciário decorreria da interpretação isolada dos arts. 114, parágrafo único, 146, e 180 do sobremencionado Estatuto da Criança e do Adolescente.

4. Improcede data venia a zelosa argüição. Mesmo que se considerasse a possibilidade da interpretação ministerial, sobreleva a compreensão mais abrangente da noção de Estado de Direito, que reserva para o Poder Judiciário a aplicação de qualquer medida restritiva de direitos. Não importa que as medidas discutidas tenham ou não natureza de pena, como da afirmação recursal, pois implicativa de restrição de direitos, que reclama juízo sentencial, com avaliação circunstancial da prova.

5. A existência do Estado de Direito não se circunscreve apenas à validade formal da Lei, mas à sua aplicação, como exercício da função jurisdicional. Para Sanchez de la Torre, o "ordenamento jurídico positivo se despliega en tres planos: el de las normas, el de las relaciones intersubjetivas y el de aplicación de aquellas a estas" (Los principios clásicos del derecho, Unión Editorial S.A., Madrid). A aplicação da norma compõe a exigência do regular ordenamento jurídico.

6. O insigne mestre Pontes de Miranda define o Estado de Direito pela sua contraposição ao Estado dito absoluto ( Comentários à Constituição de 1946, 3º ed, Tomo 4º, p. 271). O Estado absoluto seria aquele não regido pela Lei e pelo Direito, o que lhe emprestaria maior significação a expressão Estado de fato.

7. O Estado de Direito é constituído por uma ordenação jurídica, da qual depende a existência da democracia. Tanto que a "Teoria Madsoniana" exige, na hipótese número um, como fundamento do Estado democrático o chamado "controle externo" dos poderes, regulando assim a sua nítida separação (The Federalist). A especialização de um dos poderes, especificamente para o exercício da função jurisdicional não pode admitir o seu fracionamento, com atuação no mesmo sentido de órgão paralelo. Seria, segundo Madison, a eliminação do controle externo, gerando o totalitarismo.

8. Mas não é só. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em uma compreensão sistêmica, revela a reserva jurisdicional do Poder Judiciário. O art. 112 da referida Lei atribui à autoridade competente o poder de aplicação das medidas sócio-educativas. Por seu turno, o art. 146 define como autoridade a que se refere a Lei, o Juiz da Infância e da Juventude.

9. O artigo 180, em seu inciso III, outrossim, prevê a representação do Ministério Público à autoridade judiciária, para fins de aplicação de medida sócio-educativa. Além de que, o art. 181 delimita os atos do Ministério Público, nessa fase, ao pedido de arquivamento e concessão de remissão.

10. O excepcional desvelo das funções institucionais, como atualmente, perde passo, na escala de valores, para o resguardo da Ordem Jurídica. Não basta a regência das relações pelo império da lei: é preciso a garantia de sua aplicabilidade pelo Poder competente.

11. Dir-se-ia haver um conflito de atribuições no Ministério Público. De um lado, a reivindicação atual, de aplicação autônoma das referidas medidas sócio-educativas. De outro, a soberana defesa do Estado de Direito. A segunda, por mais abrangente, sobrepaira em relação à primeira, que se singulariza no particular.

Em razão, face ao dualismo de atribuições em julgamento, posiciona-se a Subprocuradoria-Geral da República pela função prevalente, que é a defesa do Estado de Direito, postulando pelo improvimento do zeloso recurso" ( RMS 1.967-6-SP)."

A jurisprudência reiterada nesse sentido conduziu à edição do Verbete de Súmula nº 108 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, in verbis :

" A aplicação de medidas sócio-educativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do Juiz".


6. Conclusão

Creio que essa exaustiva explanação vem melhor demonstrar o valor perseguido pelo aplicador do Direito da Infância e da Juventude, qual seja a reeducação e a ressocialização do adolescente infrator. Repise-se, procura-se sempre, que a sociedade ganhe um cidadão e não um marginal, para tanto faz-se necessária a correta escolha da medida sócio-educativa, nem branda demais, pois inócua, nem severa ao extremo, sob o risco de conduzir à morte civil do agente, apenas a adequada às peculiaridades de cada caso.

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Sobre o autor
José Barroso Filho

magistrado da Justiça Militar da União, professor universitário, doutorando em Administração Pública pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha), mestre em Direito pela UFBA, especialista em Direito Público pela UNIFACS, pós-graduado pela Escola Judicial Edésio Fernandes/MG e pela Escola de Formação de Magistrados/BA, conferencista da Escola de Administração do Exército (ESAEX), diretor científico do Centro de Cultura Jurídica da Bahia (CCJB), membro do Núcleo de Ação Social (CORDIS), ex-juiz de Direito em Minas Gerais e Pernambuco, ex-promotor de Justiça na Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROSO FILHO, José. Do ato infracional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2470. Acesso em: 5 mai. 2024.

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