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Direito do estado federado ante a globalização econômica

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01/10/2001 às 00:00
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7.Desconstitucionalização, desregulamentação e refluxo do princípio fundamental da justiça social

A repercussão mais viva da globalização econômica, no direito, deu-se nas últimas décadas pelos fenômenos da desconstitucionalização e da desregulamentação, notadamente nos países de economia periférica, como o Brasil. Argumenta-se, a partir das demandas insatisfeitas pelo Estado social, que há direito demais e economia de menos.

A desconstitucionalização afeta fundamentalmente a ordem econômica e social, o núcleo do Estado social, reduzindo ou extinguindo partes do sistema tutelar dos mais fracos e, por consequência, do poder de intervenção estatal. Nessa linha, a Constituição deveria retornar à função que exerceu no Estado liberal, refluindo para a organização política e garantia das liberdades individuais, retirando-se da direção da ordem econômica e social ou estabelecendo apenas princípios genéricos que não afetem o mercado.

A desregulamentação surge com o discurso sedutor da desburocratização. Tem por fito, no entanto, tornar o mercado mais livre dos controles coletivos ou sociais. Por conseqüência, a administração pública tem reduzido, substancialmente, seu poder de intervenção nas atividades econômicas.

A conseqüência de tal processo é o "o deslocamento da produção jurídica em direção aos poderes privados econômicos", como diz Arnaud(12), passando a competirem com o Estado os códigos de conduta privados, o desenvolvimento do direito negociado e a jurisdicização crescente da normalização técnica(12).

Essa genérica deslegalização da vida econômica tem trazido a expansão das exclusões sociais e regionais. Não é por acaso que um dos maiores teóricos do neoliberalismo, Frederick Hayeck, entende que a justiça social é o principal obstáculo a ser removido(13). No artigo 170 da Constituição brasileira, a justiça social é macroprincípio que se concretiza em vários outros, para conformação e condicionamento da atividade econômica. Diferentemente da justiça comutativa, própria dos contratos paritários, ou da justiça distributiva, que trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, a justiça social é uma justiça promotora, pois submete as atividades da vida privada à promoção das superações ou reduções das desigualdades sociais e regionais (artigos 3º, III, e 170, VII, da Constituição).

A incompatibilidade da ideologia neoliberal, que lastreia o avanço da globalização econômica, com a Constituição brasileira é total, pois esta tem seus fundamentos no Estado democrático e social de direito, naturalmente intervencionista, e determinada por direitos fundamentais(14). As diversas emendas que sofreu a Constituição têm reduzido o alcance de seus fundamentos, na razão inversa do favorecimento dos interesses do poder econômico. Mas, essencialmente, o Estado social permanece fincado na Constituição e, apesar dos esforços em reduzi-la, a ideologia do interesse social consegue abrigar espaços de contraposição, como se deu com a mudança do artigo 6º, ampliando-se o rol de direitos sociais, para incluir a moradia.


8.Interesse público estatal e interesse público social

Muito importante tem sido a distinção entre interesse público estatal e interesse público social, que tem tido curso independente do fenômeno da globalização. É muito mais conseqüência do amadurecimento do Estado social que passou a ter convivência menos traumática com a sociedade civil organizada. Durante o período do Estado liberal, havia nítida separação entre o que era público, sempre no sentido de estatal, e o que era privado. Todavia, o interesse público não está contido apenas no poder político organizado; pode estar na sociedade, de modo transubjetivo, para além dos interesses particulares, não se confundindo com a soma destes. E pode, até mesmo conflitar com o interesse público estatal. Veja-se o exemplo do meio ambiente, pois interessa a todos, à toda sociedade que seja preservado, mesmo que a administração pública tenha entendido que deva ser sacrificado ou limitado em benefício do progresso econômico. Às vezes, e infelizmente com freqüência, o poder público está em total sintonia com o poder econômico, especialmente nessa era de sujeição dos Estados à globalização econômica, o que faz emergir o contraponto do interesse (público) social, especialmente por esse achado da cidadania ativa que são as ações coletivas (no Brasil, especialmente as ações civis públicas e as ações populares). Quando um cidadão, na ação popular, ou o membro do Ministério Público, na ação civil pública, postula a defesa do meio ambiente contra decisões e escolhas legítimas da Administração Pública, dentro do campo indiscutível do interesse público, o conflito se dá com o interesse público social.

Durante a hegemonia do Estado liberal, a desapropriação de bens particulares apenas seria possível se ficasse constatado interesse público, mediante a transferência forçada do domínio privado para o domínio público (estatal), e desde que houvesse o pagamento de justa e prévia indenização em dinheiro. O Estado social, no entanto, patrocinou o surgimento da desapropriação por interesse social, que não se confunde com o interesse público clássico, pois há transferência forçada de domínio particular para domínio particular, sem prévia e justa indenização em dinheiro, como se dá, por exemplo, com os artigos 182, § 4º, III e 184 da Constituição de 1988, nas hipóteses de glebas urbanas coletivamente apossadas ou de reforma agrária. Nesse tipo de desapropriação, o Estado realiza o interesse social, como agente ativo de promoção da justiça social.

Essa distinção, portanto, se contrapõe ao fundamento nuclear da globalização econômica e, a fortiori, da ideologia do neoliberalismo, que propugnam pela resolução dos conflitos no ambiente do mercado, sem qualquer interferência do Estado e sem consideração de justiça social.


9.O pluralismo jurídico na perspectiva da globalização econômica e o desafio ao direito do Estado moderno

O Estado moderno trouxe a si a exclusividade ou o monopólio da produção do direito, como pedra de toque da superação dos localismos jurídicos da cultura medieval, do direito estamental, dos privilégios. Esse é um dos mais importantes traços da modernidade, no campo jurídico.

O pluralismo jurídico, entretanto, sempre esteve permeando as reflexões dos juristas, alimentado, especialmente, pelos estudiosos da sociologia do direito. Para muitos, com especial insistência nas últimas décadas, a produção do direito não é exclusividade do Estado, pois a regulação de condutas pode derivar de várias fontes sociais concorrentes, que produzem direito reconhecível pelos destinatários ou utentes, de modo muito mais eficaz (no sentido de eficácia social) que o direito oficial. Assim os direitos praticados por comunidades diversas, por movimentos sociais, por minorias, por entidades associativas, por empresas, pela tradição de grupos sociais, enfim, por novos sujeitos coletivos(15). Esses direitos seriam secundum legem (supletivos do direito estatal) ou mesmo contra legem. Essas correntes partem sempre da ótica dos excluídos dos benefícios da ordem jurídica. Porém, o Estado social sempre teve uma certa dose de adaptabilidade para recepcionar essas expressões extra-oficiais de normatividade, incorporando-as à sua própria ordem jurídica, como meio prático de inclusão e superação dos conflitos sociais, ainda que simbólico, em grande medida. Desse modo, as correntes do pluralismo jurídico não questionam o prevalecimento do direito estatal, mas sua exclusividade.

De outra natureza são os fenômenos impulsionados pela globalização econômica, constituintes de um pluralismo jurídico anti-estatal ou supra-estatal.

Estudiosos da filosofia, da sociologia e da ciência política têm vislumbrado sinais de pós-modernidade, que não significa juízo de valor positivo(16). A modernidade trouxe injustiças, por seu impiedoso individualismo e exasperação dos valores patrimoniais, que reduzem o número dos titulares reais dos direitos subjetivos, mas trouxe avanços que marcaram indelevelmente a emancipação humana. Na perspectiva do direito, sua mais importante realização diz com a igualdade de todos perante a lei, libertando os homens dos vínculos a corpos intermediários, ordens, corporações e estamentos. Os direitos subjetivos, a todos formalmente conferidos, vieram substituir os direitos privilegiados, que decorriam de concessões em razão do lugar ou da posição ocupada na rígida hierarquia da ordem social. No último estágio conhecido do Estado moderno, o Estado social procurou oferecer oportunidade de realização da igualdade de todos na lei, mediante a concretização da justiça social. A repersonalização das relações jurídicas atinge grau mais elevado da emancipação do homem, pois busca superar o exclusivo sujeito patrimonializante, no Estado liberal, e realizar o princípio da dignidade da pessoa humana, em suas dimensões ontológicas. Desse modo, a modernidade expandiu seu ciclo.

Atualmente, assiste-se a um retorno preocupante a certos traços da cultura pré-moderna, o que pode prenunciar um neofeudalismo(17) das relações jurídicas, ao lado da revalorização do homo aeconomicus. Substituem-se os vínculos diretos entre cidadão e Estado pela superposição de corpos intermediários. Passam a ser mais importantes os vínculos obrigacionais contraídos com grandes empresas, pelo temor do desemprego e de insuficiência da previdência social, ou com fornecedores de serviços e produtos, que produzem suas próprias ordens normativas.

Alguns fatores têm contribuído para essa situação de perplexidade, de quase dispensa do direito estatal, podendo ser assinalados:

a)superposição de vínculos jurídicos, especialmente com macro-empresas transnacionais, com organizações não governamentais de caráter nacional ou transnacional, com instituições políticas, culturais, filantrópicas, esportivas, com credos e instituições religiosas;

b)dispersão da consciência de res publica, de obrigação cívica com o bem público, no Brasil agravada com uma tradição privatista do público, quase sempre entendido como extensão do espaço doméstico e familiar;

c)contratualização do direito, o que leva a que os poderes normativos das empresas tenham a aparência contratual, principalmente mediante condições gerais dos contratos, fundando-se na legitimidade aparente da autonomia dos sujeitos, os quais são a elas, de fato, submetidos;

a)redução substancial dos direitos garantidos em lei (garantismo legal), de modo a que os mais fracos dependam de garantias convencionais, obtidas em negociação com os mais fortes, inclusive mediante organizações profissionais;

b)ontratualização das políticas públicas, abdicando o Estado do seu poder de império, para assumir posição de contratante paritário, como se dá com os contratos de gestão;

c)cerco à ordem econômica fundada na justiça social;

d)redirecionamento do papel do juiz, suprimindo-lhe o poder de intervenção na atividade econômica, como o da revisão dos contratos iníquos, para garantia da lógica dura do mercado;

e)predomínio de uma lex mercatoria ditada pelos poderes hegemônicos globais, que se distancia dos tradicionais costumes mercantis consolidados.

Talvez o fator mais decisivo para o desenvolvimento de relações jurídicas que tangenciam os direitos nacionais seja a rede de informação mundial, a Internet, que propicia a realização de inúmeros atos jurídicos, sem contato pessoal, à distância, para os quais os Estados e suas ordens jurídicas diferenciadas constituem estorvo. As pessoas adquirem ou utilizam produtos e serviços oriundos de outros países, com legislações civil, contratual, tributária e de direito internacional privado divergentes, que são desconsiderados quando participam dessas transações. Para os Estados federados brasileiros, que tributam a circulação de mercadorias e prestação de serviços de transportes e de comunicação, é desafiador o tratamento tributário nesses casos, até porque a Internet foi concebida para fluir sem controles públicos ou privados.

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O papel do Estado vem sendo crescentemente desafiado pela importante atuação de organizações não governamentais (ONGs), que nunca foram tão fortes quanto na atualidade. Em alguns casos, substituem o Estado, quando passam a desenvolver as políticas públicas que ele abandonou ou reduziu, ou quando reagem às direções tomadas em sentido contrário ao que elas postulam. No Brasil, a Lei nº 9637, de 15 de maio de 1998, que disciplina as chamadas organizações sociais, transforma as ONGs em parceiras das tarefas estatais, transferindo-lhes recursos financeiros públicos ou competências de execução, mediante contratos de gestão e parceria. Os serviços públicos que podem ser alcançados pelas organizações sociais são amplos: ensino, pesquisa, desenvolvimento tecnológico, meio ambiente, cultura e saúde.


10.Em conclusão: qual o espaço a ser ocupado pelo Estado federado?

A experiência histórica do federalismo em muitos países, como o Brasil, depara-se com a lógica anti-estatal da globalização econômica, ao início do século vinte e um, quando os centros reais de poder se deslocam para as empresas transnacionais. O federalismo tem sido concebido como vitorioso mecanismo de democratização do poder político, na medida em que desconcentra as decisões públicas e permite maior grau de participação popular na organização política. Os dois fenômenos, o federalismo e a globalização econômica, parecem incompatíveis. Todavia, uma análise mais detida demonstra que global e local não se repelem, podendo daí nascer um sistema eficaz de reação aos efeitos negativos da globalização econômica, que não contempla as diferenças e aprofunda exclusões regionais e sociais. A reação do local ao global faz despontar a importância dos Estados federados, para preservação do itinerário emancipador dos direitos sociais e econômicos. Assim, ao menos em princípio, os Estados federados estão melhor preparados para defesa dos interesses locais do que os países organizados sem federação, pois a redução dos direitos nacionais neles é maior.

O mais bem sucedido processo de integração supranacional, a União Européia, encaminha-se no sentido de uma organização federativa, o que parece ser inevitável. A União Européia constrói um federalismo em novas bases, distanciando-se dos três modelos tradicionais acima referidos, pois, ao contrário da centralização tendencial deles, não se pretende abdicar da soberania nacional e, por conseqüência, da soberana edição de direito próprio, sem embargo da harmonização legislativa, a partir de normas gerais, nomeadamente das diretivas. As diretivas não constituem normas jurídicas auto-aplicáveis, pois dependem de integração aos direitos internos de cada país, salvo a hipótese de flagrante colisão das duas ordens, quando devem prevalecer, segundo entendimento que se consolida no Tribunal de Justiça europeu.

O alcance e os limites das normas gerais sobrelevam no federalismo brasileiro, pois a competência legislativa concorrente (artigo 24 da Constituição) e a competência comum de execução de políticas públicas (artigo 23 da Constituição) podem se converter em poderosos instrumentos de fortalecimento dos Estados federados, máxime no que diz respeito à realização dos direitos sociais e econômicos. Desse modo, o enfraquecimento dos direitos nacionais, provocado pela globalização, pode ser compensado, com vantagens, pela atuação renovada dos Estados federados, preservando-se os objetivos realizáveis do Estado social.

Será mister, todavia, que se repense o federalismo praticado no Brasil ou o que, no jargão político, costuma-se denominar de "pacto federativo", com mais nítida repartição de competências, encargos e receitas públicas. Os Estados federados têm de se preparar para esse desafio, máxime, sem qualquer preocupação de ordem ou exaustão:

a)reforçando o que é público;

b)garantindo as políticas públicas de inclusão, especialmente a educação;

c)intervindo mais fortemente, inclusive mediante a competência concorrente, na realização dessas políticas públicas;

d)reforçando a administração pública direta, com mecanismos que facilitem a prestação de serviços;

e)pugnando pela simplificação processual, desjudicializando o que for possível;

f)eliminando a autofagia da guerra fiscal que a todos avilta, mas que lamentavelmente prossegue, apesar da Constituição e da Lei de Responsabilidade Fiscal. Os Estados estão concedendo tantos benefícios fiscais que correm o risco de não terem receita pública suficiente para manutenção de suas atividades.

O fortalecimento do federalismo atua "por baixo" da globalização, como um dos meios de fortalecimento do local, mas há de se avançar no controle "por alto", o que somente é possível com a existência de organismos políticos internacionais, que realizem a tão esperada democracia mundial(18) e, a fortiori, de um direito mundial básico que estabeleça as regras do jogo da economia mundial, no interesse de todos e não apenas dos que detêm o poder real, manejado pelos poderosos bancos centrais dos países hegemônicos e pelos conselhos de administração das empresas transnacionais. Os organismos internacionais financeiros e econômicos existentes (a exemplo da Organização Mundial do Comércio, do FMI e do Banco Mundial), funcionam dentro da lógica da expansão da globalização econômica e não para regulá-la. Somente uma ordem jurídica internacional efetiva e que contemple as diferenças poderá assegurar as autonomias nacionais e locais e a autonomia dos sujeitos, para que a dignidade da pessoa humana seja o foco principal do direito e não os fatos e interesses econômicos contingentes.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direito do estado federado ante a globalização econômica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2243. Acesso em: 5 mai. 2024.

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