Artigo Destaque dos editores

"Compra e venda" de monografia.

Consequências cíveis e criminais

Exibindo página 1 de 3
Leia nesta página:

Se a monografia presta para medir o conhecimento de quem a escreveu, a apresentação de obra alheia como própria é uma artimanha, não importa se o estudante pagou ou não pelo uso do direito de nominação.

1-CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

A expressão "compra e venda" de monografia não é adequada. Primeiro, porque gera a falsa compreensão de que somente a transferência onerosa do direito autoral de nominação [01] da obra a terceiro é um problema. Se a monografia presta para medir o conhecimento de quem a escreveu, a apresentação de obra alheia como própria é uma artimanha, não importa se o estudante pagou ou não pelo uso do direito de nominação. Segundo, porque a compra e venda, tal como a doação e a permuta, é espécie de alienação, que significa transferência de coisa. Parece bastante claro que o negócio envolvendo monografias não gera transferência de coisa, da obra materializada em meio físico ou virtual. Alienação há, por exemplo, na aquisição de livro num sebo. Nesse caso há negócio de "compra e venda", indiscutivelmente lícito, em que se transfere onerosamente coisa (a criação intelectual num suporte físico). Por outro lado, quem negocia o uso de por o nome em obra que não criou está fazendo negócio com direito [02]. No caso, o objeto do negócio é o direito moral do autor de por o nome em sua obra [03]. Por conta disso, já afirmaram, em observação que vale para qualquer negócio envolvendo direito, que não se vendem direitos autorais, nem se doam, nem se permutam. Transferem-se por cessão [04].

É preciso distinguir ainda a cessão do direito ao nome por quem não criou da que é feita pelo o autor da obra. Só o segundo negócio jurídico interessa. Aquele negócio jurídico é sem dúvida nulo e crime. A nulidade não se configura, no caso, pela cessão direito de terceiro – o que caracterizaria ineficácia – mas pela impossibilidade de algum dia o cedente adquirir o direito de por o nome em obra criada por outrem. Trata-se de negócio jurídico com objeto impossível, e, por isso, nulo (art. 166, II, do CC). Além do ilícito civil, a cessão de obra de terceiro é crime previsto no artigo 184 do Código Penal, já que se trata de utilização de direito autoral sem autorização do autor (violação).

Já a cessão do direito ao nome pelo próprio autor é controversa. Há quem considere esse negócio jurídico nulo por contrariar a norma que se extrai do artigo 27 da lei 9610/98, que veda a transmissibilidade do direito moral de autor [05]. Outros já consideram que o princípio da não transmissibilidade do direito moral do autor só veda a renúncia do autor de por o nome na obra que criou, e não a autorização para que terceiro exerça esse direito [06]. Nesse caso, a licença não afrontaria o princípio da intransmissibilidade do direito de nominação, pois não implicaria vedação para que o verdadeiro autor pudesse exercer o direito de, a qualquer tempo, reconhecer a paternidade da obra. De todo modo, a cessão de direito moral pelo próprio autor da obra não pode ser considerado crime de violação de direito de autor. É que, para que se configure a violação prevista no caput do art. 184, do CP, é necessário que a utilização indevida dos direitos (morais e/ou patrimoniais) do autor não seja consentida [07]; o que não é, obviamente, o caso. No entanto, é discutível se o uso da monografia pelo estudante não configuraria outros crimes, como falsidade ideológica, uso de documento falso ou estelionato.

De todo modo, é apenas sobre a cessão do direito de nominação pelo próprio autor da obra o objeto do presente estudo. Afinal, é nulo ou não esse negócio jurídico? Em caso de anulação, devem-se desconstituir os efeitos do negócio jurídico? Será que essa desconstituição não geraria enriquecimento sem causa para algum dos envolvidos no negócio? Sobre o aspecto criminal, indaga-se: alguma fase desse negócio jurídico configura crime?


2- NULIDADE POR VIOLAÇÃO EXPRESSA DE PROIBIÇÃO LEGAL?

A proibição para que o autor ceda o direito ao nome a terceiro não existe por conta da norma que veda a "alienação" e a renúncia de direitos autorais (art. 24, da lei 9610/98). O termo alienação – embora utilizado com equívoco pelo legislador, como já demonstrado – equivale a uma cessão total de determinado direito de autor. Isso não ocorre na cessão do direito de nominação. Nesse caso, a cessão é feita na modalidade licença, não havendo oneração do direito. Enquanto a oneração gera direito de exclusividade e produz efeitos contra terceiros, a licença, por sua vez, segundo Ascensão: " [...] se esgota na relação jurídica constituída com o autor" [08]. Desse modo, o autor poderia declarar a todo tempo o direito de paternidade (o qual gera efeitos contra todos), embora, como alerta Desbois [09]: "[...] da vinculação contratual devesse resultar o dever de indenizar".

Para Ascensão [10], a utilização do direito de nominação por outro que não o autor da obra poderia esbarrar na norma prevista no art. 5º, XXVII, da CF, que confere ao autor o direito exclusivo de utilizar a obra. No entanto, Ascensão considera que o destinatário dessa norma é o titular dos direitos de autor, que não é necessariamente o autor intelectual. Faz referência inclusive à norma do Código Civil anterior (art. 667, do CC de 1916), que permitia a alienação dos direitos morais de autor, para concluir que: "[...] perante textos constitucionais semelhantes, o art. 667 do Código Civil nunca foi considerado inconstitucional" [11].

Para o mestre português, no entanto, a convenção em que se pactua a cessão do direito de nominação é nula. Considera que a norma extraída do art. 52, da lei 9610/98, é aplicável por analogia ao caso, pois essa norma ressalva os direitos de natureza personalíssima e os expressamente excluídos quando houver cessão total de direitos [12].

Apesar da criatividade da solução proposta, o equívoco está em aplicar a analogia para resolver o caso quando há norma expressa inteiramente aplicável. A norma que se extrai do art. 4º da lei 9610/98 prescreve que todos os contratos de direito autoral devem ser interpretados restritivamente. Trata-se de norma aplicável a todos os negócios em que há cessão parcial ou total dos direitos de autor. Desse modo, se há pacto expresso de cessão do direito de nominação, deve-se considerar que somente a licença foi transferida, e não o direito de paternidade da obra. O estranho é que Ascensão, embora considere nulo qualquer negócio envolvendo direito moral do autor, parece admitir a licença do direito de nominação. Segundo o autor:

Quer isto dizer que o criador intelectual, mesmo que pudesse ceder o direito ao nome, manteria na sua titularidade um núcleo fundamental de poderes ínsitos no direito de autor. [...] E entre esses poderes está [...] o direito à paternidade da obra (art. 25, I). A ser válida semelhante cláusula, só se poderia pois admitir de modo limitado e revogável a todo o tempo, pois o criador intelectual nunca perderia o direito de reivindicar essa qualidade.

Além de não haver lacuna legislativa, há nota diferenciadora [13] entre os contratos em que se negocia a transmissão parcial e aqueles em que se cede em bloco os direitos de autor, o que impede a aplicação da analogia. Na cessão do direito de nominação há transferência de direito determinado, podendo as partes estabelecer ou não os limites dessa transmissão; já na cessão total dos direitos de autor há transferência em bloco dos direitos, nesse caso, apenas a lei regula os limites da transmissão.

2.1- NULIDADE POR OFENSA À MORALIDADE?

Há ainda a possibilidade de considerar a cessão do direito de nominação nula – caso afastada a nulidade por ofensa a proibição de não transmissibilidade dos direitos morais de autor – por ofensa aos bons costumes. Nulificar um negócio por ofensa à moralidade pública não é tarefa fácil. Como afirmou Marcos Bernardes de Mello, não há concepção unívoca sobre o assunto, sendo que: "[...] Em geral, os critérios propostos pela doutrina não são adequados para permitir uma avaliação subjetiva sobre a moralidade ou imoralidade do negócio jurídico" [14]. Planiol, na clareza que lhe é peculiar, considera até perigosa essa permissão conferida aos juízes, pois: "[...] Supondo-se exercido, por homens facciosos, por moralistas demasiado rígidos, ou por espíritos sectários, a liberdade civil poderia sossobrar[...]" [15].

Parece que o melhor a fazer, para resolver o caso em questão, é atuar por exclusão, sempre permitindo a manutenção do negócio jurídico quando a moral empírica ou metafísica permitirem duas ou mais ações; privilegiando-se, desse modo, a liberdade do cidadão. Por moral empírica entenda-se a moral pública, que Laurent define como sendo: "a consciência geral aceita, salvo as dissidências individuais sem relevância [...]" [16]. Por metafísica da moral entenda-se a moral racional, ou melhor, as concepções sobre uma possível melhor moral [17]. Se a moral pública for indiferente à cessão do direito de nominação, não há por que considerar o negócio jurídico nulo. Também não será possível nulificar o negócio se essa conduta for incensurável pela concepção moral mais severa já pensada, a de Kant, que prescreve ser imoral a ação praticada: "[...] para obedecer a uma certa atitude sensível, a um certo interesse material, mas somente por obedecer a lei do dever" [18]. Caso a conduta seja incensurável segundo a ética Kantiana, não há nada a fazer que não seja preservar o negócio jurídico em questão.

A moral de determinado grupo social não pode ser considerado parâmetro para nulificar um contrato, para limitar a liberdade dos cidadãos. A história comprova que as opiniões populares não merecem crédito quando utilizadas como fundamento para restringir a liberdade. Os mesmos que crucificaram Jesus Cristo hoje o veneram. Segundo o professor Antônio José Miguel Feu Rosa, ao comentar sobre o papel decisivo da população no processo que resultou na crucificação de Jesus Cristo:

O direito de punir dado ao rei, assim como aos magistrados, era ilimitado. Com a queda da monarquia e a implantação do regime republicano, começaram a surgir limitações. A Lei Valéria criou garantias de acusação e defesa, e sobretudo, deu direito ao cidadão romano condenado à pena capital de recorrer à assembléia do povo (judicium populo – julgamento popular). Só seria executado se o povo, reunido em comitium (comício, que era a reunião do povo em praça pública), assim decidisse. O magistrado preside o inquérito e ao povo cabe a decisão definitiva [19]

Embora não cheguemos ao extremo de Nélson Rodrigues, que, em frase de efeito, considerou a unanimidade burra, nem por isso podemos deixar de considerar, por prova histórica, a opinião da maioria maleável e fonte de injustiças. Será que essa moralidade teria força para limitar o direito constitucional à liberdade, escancarado no rol de direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal? A resposta é, sem sobra de dúvidas, negativa.

Além disso, a cessão do direito de nominação parece não contrariar a moral utilitária, constitucionalmente tolerada, própria dos povos submetidos ao livre mercado, ao capitalismo, como o Brasil. Esse tipo de sociedade despreza o valor de uso da mercadoria – a matéria prima e o trabalho despendido para constituí-la – em detrimento do valor de troca, que se revela, segundo Marx: "[...] na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes" [20]. Os burgueses desconsideram o trabalho, o esforço braçal e intelectual necessários para produzir uma obra intelectual, como também, a individualidade da criação. O que importa é o valor de troca da mercadoria criada. Há uma equivalência absoluta entre a mercadoria e o valor destinado a adquiri-la. Assim como não importa, para as madames, que seus colares sejam feitos por "diamantes de sangue", também os estudantes, imbuídos pelo espírito burguês, desconsideram o fato de que "suas" monografias sejam feitas à custa do trabalho de outra pessoa.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Por outro lado, a cessão do direito de nominação parece não ser censurável por contrariar a moral Kantiana, a mais severa já pensada, pois essa sanção acarretaria ofensa à igualdade, pela impossibilidade de punir conduta com a mesma imoralidade. Para Kant, uma ação moral difere de uma ação legal pelo seguinte: "[...] Tem-se a moralidade quando a ação é cumprida por dever, tem-se, ao invés, a pura e simples legalidade quando a ação é cumprida em conformidade ao dever, segundo alguma inclinação ou interesse diferente do puro respeito ao dever" [21]. É fato incontroverso que muitos estudantes apenas não pagam pelo direito de colocar o nome em monografia feita por outra pessoa por medo de serem descobertos. No fundo, sabem que as aulas na faculdade de direito (que viraram, em sua grande maioria, cursinhos preparatórios para concursos públicos em cinco anos), somado às apostilas e aos cadernos lidos durante o ciclo universitário, não os estimularam a pensar num problema jurídico digno de merecer uma reflexão monográfica. Mesmo assim, apenas em cumprimento ao dever legal, resolvem fazer por si sós a monografia, mesmo que o problema não seja um verdadeiro imbróglio, e que a solução em nada contribua para o avanço da ciência jurídica. Nesse caso, teríamos, segundo a ética Kantiana, uma ação com a mesma carga de imoralidade da ação do comprador do direito de nominação. E mais: se, para Kant, a ação motivada pelo mero cumprimento do dever legal é tão reprovável como a ação ilegal e manifestamente imoral, haveria desigualdade caso se punisse a segunda conduta, e não também a primeira (para a qual não há, indiscutivelmente, sanção jurídica).

Daí por que a conduta de pagar pelo direito de nominação pode ser até imoral, segundo o pensamento de Kant, mas é incensurável, sob pena de violar-se outro valor: o direito à igualdade.

2.2 FASE PÓS-CONTRATUAL: E SE O AUTOR DA MONOGRAFIA RESOLVE "DAR A LÍNGUA COM OS DENTES" APÓS A COLAÇÃO DE GRAU?

Caso o estudante seja aprovado com a utilização da monografia feita por outra pessoa, o que ocorre se, depois da colação de grau, o verdadeiro autor da obra declara a paternidade da obra? Há quem considere que a atitude do criador da obra seja lícita, pois, ao declarar a paternidade da obra, o autor exerce direito subjetivo (art. 24, I, lei 9610/98) [22]. Por outro lado, é possível considerar a atitude do professor abuso de direito, e, portanto, ilícita (art. 187, CC), considerada uma possível motivação financeira do cedente ao exercer seu direito de paternidade. Nesse caso, o criador da obra intelectual seria obrigado a ressarcir todos os danos gerados por sua conduta, entre os quais se incluiria os danos gerados ao aluno por ter que voltar novamente a graduação: o preço pago pela orientação e apresentação de nova monografia, dessa vez feita pelo graduando.

De todo modo, deve-se considerar suspeita a atitude do autor de monografia que resolve assumir posteriormente a paternidade da obra. O aparente exercício do direito poderia mascarar uma cobrança de dívida ou até um rancor por um improvável sucesso alcançado pela obra acadêmica negociada. Nesse caso, nem se haveria de investigar a existência de culpa no exercício do direito subjetivo do autor da obra, pois é prescindível para a caracterização do abuso de direito [23]. Estaria caracterizado, na hipótese, o abuso de direito, que requer, segundo Castanheira Neves:

[...] aparência de licitude jurídica – por não contrariar a estrutura formal definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde – e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto ou materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o cumportamento realizado se diz exercício [24]

Não se trata, contudo, de presumir a má fé do autor da obra intelectual que assume a paternidade tempos depois de ter negociado o direito de nominação, mas de impor ônus a quem alega contra as regras da experiência. A flexibilização do clássico princípio probatório ocorreria justamente por conta da dificuldade de provar o desvio de finalidade no exercício do direito. Nesse caso, caberia ao juiz impor o ônus de prova a quem alega contra a normalidade. Como afirmaram Alaor e Alvino de Lima:

[...] o que se verifica, em matéria de responsabilidade, é o progressivo abandono da regra actori incumbit probatio, no seu sentido absoluto, em favor da fórmula de que a prova incumbe a quem alega contra a normalidade, de que é válida tanto para a apuração de culpa, como para a verificação de causalidade [25].

2.3 A DESCONSTITUIÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO POR INVALIDADE E O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

Não se deve excluir a possibilidade de o negócio jurídico ser desconstituído por nulidade. Como afirmado anteriormente, há controvérsia sobre a proibição da cessão do direito de nominação a terceiro e também quanto à moralidade ou não do negócio.

Há quem considere que a desconstituição do negócio jurídico acarretaria o retorno da situação das partes ao status quo, como se não houvesse existido o negócio jurídico [26]. Nesse caso, quem pagou para por o nome em obra alheia receberia de volta o dinheiro; já o autor da obra, que havia cedido o direito de utilização do direito ao nome, teria de volta o direito de exercer com plenitude o direito de declarar a paternidade da obra que criou.

No entanto, no caso dos negócios jurídicos envolvendo monografias, a desconstituição do negócio jurídico não é tão fácil assim. É que, em regra, doutores fazem monografias de futuros doutores, doutorandos fazem a monografia para futuros mestres e os mestrandos, por sua vez, fazem os trabalhos de conclusão de curso dos graduandos. Isso significa que, na maioria dos casos, a obra intelectual está aquém das habilidades intelectuais de quem fez a obra. Um mestrando, por exemplo, utiliza sempre uma linguagem mais amena e evita entrar em grandes controvérsias quando faz trabalhos de conclusão de curso para graduandos. No caso da desconstituição do negócio jurídico, do retorno das partes ao status quo, o verdadeiro autor da obra intelectual não tem, em regra, o mínimo interesse em colocar seu nome na obra feita para atender necessidades de terceiro. Por outro lado, o estudante sairia bastante beneficiado com o retorno ao estado anterior ao negócio. Reprovado na apresentação da monografia – muitas vezes por incompetência na apresentação oral perante a banca examinadora –, reaveria o dinheiro pago, embora já tivesse usufruído o direito de licença. Indaga-se: não haveria, nessa hipótese, enriquecimento sem causa?

Em outros termos: é possível que a desconstituição dos efeitos do negócio jurídico acarrete enriquecimento ilícito? Muitos negam essa possibilidade por considerarem que a causa geradora do enriquecimento sem causa é o próprio negócio jurídico em que se pactuou a cessão do direito de nominação. Daí por que, desconstituído o negócio, as partes deveriam retornar ao status quo, sob pena de enriquecimento sem causa. Pedro Paes, um dos monografistas sobre o tortuoso tema do enriquecimento sem causa, desfaz essa confusão:

Não há, portanto, confundir, sequer remotamente, a causa como elemento constitutivo de ato jurídico e a causa do enriquecimento.

Nesse ponto, convém repisar, sendo válida a transferência formal da propriedade ou a passagem de valor, procura-se verificar, na cabência da actio de in rem verso, se a substância do ato de transferência tem ou não razão de ser, se tem motivo, justificação.

A primeira causa deriva do título jurídico válido, que sempre há de existir para possibilitar a alteração da propriedade. Então a causa de transferência sempre existe. A segunda, causa específica do enriquecimento, é a razão de direito, pela qual o enriquecido conserva a propriedade adquirida. Se não há motivo justo, se a substância do ato não tem conteúdo jurídico, não pode ser legitimada, não há causa. A repetição passa a ser decorrência lógica dos princípios gerais de justiça, porque a ninguém é dado locupletar-se com jactura alheia [27]

Em acórdão do TJDFT sobre o tema, há aplicação errada do instituto enriquecimento sem causa. Após desconstituírem a cessão do direito de nominação de obra monográfica, decidiram que as partes deveriam retornar ao status quo, sob pena de enriquecimento sem causa [28]. Fosse o enriquecimento sem causa evitado com a desconstituição do negócio jurídico, não haveria razão para considerar o enriquecimento sem causa instituto autônomo. Nesse caso, os efeitos da anulação já resolveriam o problema do enriquecimento sem causa. O que é um erro, tendo em vista o caráter subsidiário do enriquecimento sem causa. O caráter subsidiário desse instituto implica que o lesado só pode utilizar ação para alegá-lo, segundo Giovanni: "quando precisamente as normais ações legais ou contratuais não prevêem uma solução específica ao injustificado empobrecimento que lhe corresponde" [29] . Daí ter afirmado Jorge Americano que: [...]Quando o acto se annulla por defeito de forma ou preterição de solemnidade [...], ou por ser taxativamente declarado nullo ou sem effeito [...], temos propriamente a condictio ob injustam causam, ou nos bastam os princípios geraes que regulam as nullidades" [30].

Na verdade, a ocorrência do enriquecimento sem causa depende da constatação de um fato, de uma avaliação empírica. Como afirmou Giovanni: "Ainda que seja possível, mesmo que em tese, discutir acerca da causa como elemento do negócio jurídico, ela, no enriquecimento indevido, não se liga a um negócio, mas a um fato a ser aferido na hipótese concreta" [31]. No caso da cessão do direito de nominação, depende de averiguar se, após a desconstituição do negócio jurídico, o autor da obra intelectual não ficará com o trabalho engavetado – sem a possibilidade, por absoluta falta de identificação com a obra criada, de exercer o direito de paternidade de obra aquém de sua intelectualidade –, enquanto aquele que apresentou a monografia ficaria com o dinheiro de volta, mesmo já tendo usufruído o direito de licença. Haveria aí, sem dúvida, enriquecimento sem causa.

Deve-se frisar ainda que a ação para alegar o enriquecimento sem causa não está condicionada à moralidade do fato que gerou o dano. A discussão sobre a moralidade da cessão do direito de nominação não tem cabimento aqui. Não há negar-se que o instituto do enriquecimento sem causa foi transformado em norma jurídica por inspiração moral. Como afirmou Ripert, sobre a justificativa moral do instituto: " a odiosa exploração do próximo é contrária à moral que ensina a tratar os homens como irmãos" [32]. No entanto, consagrado o instituto em norma jurídica, não há razão para condicionar o seu uso à moralidade. Prova disso é que mesmo em negócios com alta carga de imoralidade, como o jogo do bicho e a aposta (ambos são, inclusive, contravenções penais), o ganhador não pode ser acionado para devolver o que ganhou com o fundamento de que enriqueceu sem causa (art. 814 do CC) [33]. Vai ainda mais longe Jorge Americano, afirmando que: "Egualmente, quem recebe dinheiro para praticar um crime, commette um acto illicito, tanto como o que pagou para esse fim, entretanto a lei consente que o que recebeu illicitamente se locuplete á custa do que pagou illicitamente, sem que este possa repetir" [34].

Assuntos relacionados
Sobre o autor
João Paulo Rodrigues de Castro

Defensor Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, João Paulo Rodrigues. "Compra e venda" de monografia.: Consequências cíveis e criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2344, 1 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13941. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos